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O normal é que as câmaras estejam viradas para eles, os cantores, os actores, os homens e as mulheres que sobem aos palcos e que preenchem as telas. Um dos maiores nomes da canção francesa, filho de refugiados arménios que atravessou o século XX e que entrou no seguinte com a certeza que nada a não ser a morte o poderia parar (e só mesmo ela para o obrigar à reforma antecipada, tinha ele 94 anos, estávamos em 2018), Charles Aznavour foi antes de mais cantor, mas também preencheu as telas, como não nos deixa esquecer o “Disparem Sobre o Pianista” em que Truffaut o fez protagonista no início da ebulição nouvelle vague. Aznavour By Charles mostra-nos Charles Aznavour, a estrela, a fazer algo para além do normal. Em 1948, Edith Piaf ofereceu-lhe uma câmara. Nos 34 anos seguintes, Aznavour registou paisagens e rostos, gente anónima, as mulheres da sua vida, as estrelas como ele. Marc di Domenico mergulhou nesse imenso arquivo e deu-lhe uma forma. Romain Duris fez-se Aznavour e deu voz ao seu pensamento. O resultado é um filme revelador. O observador torna-se a coisa observada, e vice-versa. “Aznavour by Charles”, Charles é Aznavour. (Mário Lopes)
Artem Aisagaliev, nascido na Rússia e a viver nos Estados Unidos, volta à casa dos seus avós no extremo oriente russo para mergulhar profundamente nas suas memórias de infância, escolhendo quase exclusivamente apenas os membros da sua família nesta primeira longa-metragem, Babai. Pelos olhos dos dois irmãos mais novos, o realizador vagueia pela fronteira nebulosa entre o mundo infantil e o dos adultos, uma fronteira que não se atravessa sem deixar marcas. A câmara cola-se aos planos fechados claustrofóbicos dos rostos, mãos e costas dos dois miúdos, que se movem livremente num espaço muito limitado, o espaço que encolhe diante dos olhos, para dar lugar a uma disciplina militar. Os rapazes não choram neste mundo desprovido de presença feminina e, se o fizerem, Babai, criatura mítica do folclore, irá levá-los. Babai também é o nome do avô dos rapazes, e esta é uma linha fácil de ler: os meninos serão levados, um dia, do mundo de surpresas e maravilhas, para cumprirem o seu dever como homens. (Anastasia Lukovnikova)
No universo cinematográfico de Carlos Conceição o maravilhoso não é mundo à parte da realidade. Complementam-se, sacrificam-se um pelo outro. Um irmão ajuda uma irmã a morrer feliz. O conto de fadas é também um conto de fodas e máscaras de oxigénio.
Segundo a fé islâmica, barzack designa um estado de limbo, entre o inferno e o paraíso, depois da vida na Terra. Na cidade espanhola de Melilha, situada no norte da África, vários jovens estão neste limbo, ansiando por uma passagem para a Europa. Eles vivem em cavernas e fendas nas montanhas próximas ao porto. Nesse espaço ancestral atemporal, acendem fogos, cantam e buscam na escuridão a luz de outra vida.
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As constelações das luzes na distante costa da Espanha são tão inacessíveis quanto suas parecidas no céu acima para o grupo de garotos presos na costa norte da África, no primeiro longa de Alejandro Salgado. Barzakh, na cultura islâmica, é um estado entre a vida e a morte e, para os meninos que tentam fazer a travessia para a Europa, encontra sua encarnação terrena na interminável espera nos penhascos, entre os países, os continentes, a força nua. da natureza e do chamado “mundo civilizado”, infância e idade adulta. Os meninos são meras silhuetas contra as luzes escassas da noite sem fim, suas sombras deslizam nas paredes antigas das cavernas, eles não têm nomes nem rostos, mas têm vozes para assinar as músicas sobre a terra que deixaram para trás e seus sonhos da vida que ainda está para começar. (Mafalda Melo)
A jornalista Marilia Melhado aceita dar uma entrevista, à boca das urnas brasileiras, no dia da eleição que decide entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Esta simples descrição não contém a impotência tangível que o filme transmite, especialmente palpável num momento de polarização política, virtualmente global, em que a discussão pública se torna desordeira. E se devemos tentar escutar o próximo, comecemos por escutar Marilia. (Ana Cabral Martins)
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A jovem e intrigante dupla de realizadores formada por Maya Kosa e Sergio Da Costa entrega, com L’Île aux oiseaux, uma segunda longa-metragem de uma poesia quase irreal, embora intimamente ligada à realidade, indo e voltando entre ficção e verdade, onde uma brota da outra como por magia – que sempre esteve no centro do trabalho da dupla suíça (de origem polaca e portuguesa, respectivamente). Assim como as aves de rapina feridas, Paul, Antonin e os outros funcionários do centro de Genthod precisam de aprender a caçar para sobreviver numa sociedade que “não permite erros”. “Que cheiro é este?” Pergunta o jovem, recém-chegado ao centro e herói do filme, ao entrar pela primeira vez na sala das gaiolas de ratos; “É merda, vais habituar-te”, responde Paul, que trabalha ali há muito tempo. Uma frase de abertura simples e crua que resume o filme bastante bem: grandioso na sua terrível e contraditória simplicidade. A escassez de diálogos torna o conteúdo ainda mais poderoso. As palavras são cuidadosamente escolhidas, entre admiração e precisão, de uma maneira que relembra a os diálogos de Rohmer, com a simplicidade e o tom cómico que se assemelham a Kaurismäki. Como se os muitos planos-sequência que pontuam o filme falassem com imagens quando as palavras permanecem em silêncio. (Mickael Gaspar)
A longa metragem inaugural de Sembène é tida como o primeiro filme de um realizador da África subsariana a ter atenção internacional. Baseado num conto homónimo do autor, ela acompanha a vinda, de Dakar para a Riviera francesa, de Diouana, uma jovem senegalesa, contratada como babysitter por um cosmopolita casal francês. Este é um trajeto de silenciosa rebelião, na passagem dos sonhos ilusórios por uma vida melhor a uma realidade de exploração.
Este filme não é falado e nem legendado em inglês.
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Entregue à sua sorte, Paulo, recentemente divorciado, começa a trabalhar como taxista para sobreviver na grande cidade e pagar a pensão do seu filho de 10 anos. Enquanto conduz pelas noites intermináveis do Rio de Janeiro, acompanhamos o condutor no interior do seu taxi, por onde transitam passageiros que se conectam mais intensamente com a história de Paulo. Nesta crónica obscura e palpitante, a imprevisibilidade da noite ocupa o primeiro plano, onde as imagens oscilantes e claustrofóbicas nos antecipam a angústia.
Na oitava longa-metragem de Eryk Rocha, que passeia entre a ficção e o documental, sentimos as ruas do rio de Janeiro como uma espaço obscuro e decadente, e onde a esperança apenas renasce dentro do taxi, quando novos passageiros ajudam Paulo a ultrapassar a solidão e o caos urbano que enfrenta todas as noites. Apenas estes personagens poderão trazer novamente amor e felicidade à vida de Paulo. (Inês Lima Torres)
Este filme não é falado e nem legendado em inglês.
Inspirado no Cântico do Irmão Sol ou Cântico das Criaturas, que São Francisco de Assis escreve em 1224, esta curta de Miguel Gomes reactiva o seu alcance. Na cidade de Assis em 2005 e na lembrança do louvor das pequenas criaturas a um santo desmemoriado. )
Uma das forças do documentário de Pedro Gonçalves é a sua contemporaneidade. A maior parte dos documentários sobre música foca-se sobretudo em bandas, artistas ou movimentos que já não existem ou cujo momento áureo ocorreu no passado. Caos e Afinidade fala-nos sobre o aqui e agora. Um retrato da música improvisada portuguesa, com maior enfâse em Lisboa e com epicentro no, ironicamente extinto, bar Irreal. Pedro reúne um conjunto de músicos incríveis, resgatando-os da sua invisibilidade através de concertos e entrevistas. Um objecto para memória futura naquele que é o seu primeiro e promissor filme. (Carlos Ramos)
Neste “tipo de peça concebida especificamente para o local”, o realizador argentino Jonathan Perel (17 Monumentos, Toponymy) serve de detective, ao fazer uma viagem solitária de 14.000 quilómetros para revisitar as cenas dos crimes de repressão da ditadura de 1976 -1983 no seu país. Enquanto lê em voz alta relatórios oficiais sobre conspirações, sequestros e assassinatos, vemos as intermináveis vedações, emolduradas pelo pára-brisas do carro do realizador, filmadas às escondidas, durante o dia. Não são prisões que se vêem por trás das vedações, mas chaminés fumegantes das fábricas. As provas que Perel recolhe, seguindo o relatório recentemente publicado pelo estado argentino, serve para responsabilizar as empresas pelos seus crimes do passado, mas a falta de transparência, evidente no seu exaustivo catálogo de imagens, obriga também a fazer perguntas inconvenientes sobre o presente. (Anastasia Lukovnikova)
Há duas coisas sempre presentes no cinema de Tsai Ming-Liang. A primeira é a expressão da amizade pelo seu actor Kang-sheng Lee. A segunda é uma minuciosa capacidade de observação e escuta da realidade, o que faz com que cada filme parece um refinamento no anterior. Os dois elementos estão presentes em Rizi, um filme que parece ser feito contra a solidão, a do realizador e dos seus personagens. Kang vive atormentando por uma dor de costas, algo que o cinema de Liang vem aflorando ao longo da sua obra. Por sua vez, Anong Houngheuangsy é massagista e habita num apartamento em Bangkok, no qual prepara as suas refeições. Propositadamente não legendado pelo autor, este é um filme de comunhão que não passa pela palavra. Antes pelo encontro dos corpos, por uma singela caixa de música ou pelo habitar de um espaço urbano no qual a intimidade é nuance em atribulada atmosfera sonora. É na duração dos planos que se jogam as decisivas mutações da realidade. (Carlos Natálio)
Duas mulheres reais, dois rostos, um beijo, um abraço. Esta demonstração de amor absoluto lança o filme de Torres Lleiva numa torrente de emoções. Percebemos um mal à l’aise constante que contamina a relação mas não sabemos porquê. Estamos convidados para o meio de uma relação como confidentes. A partir de um momento percebemos tratar-se de uma doença, essa “coisa” instalada que mata e não vai desaparecer. E é aqui que tudo se ajusta, com avanços e recuos, como é próprio da incerteza. São raros os filmes que criam nós que não deslaçam, mas em que a sua ternura permite que qualquer lampejo que surge seja uma tábua de salvação. E é por isso que o filme inclui histórias de outros tempos que nos ajudam a compreender o seu presente. Este cinema de Lleiva é repleto de planos de rosto e de corpos exauridos, e mostra que mesmo na dor é possível mostrar sensualidade. Vendrá la muerte e tendrá tus ojos é daqueles filmes em que apetece ficar para toda a eternidade. (Miguel Valverde)
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