Vinte e cinco anos depois da obra de estreia, o cineasta americano vem a Portugal, convidado pelo IndieLisboa, que o reconhece como um “herói independente”
A chamada de Skype cai a meio da conversa. E passam uns minutos antes de a ligação ser retomada. Whit Stillman explica: “Acho estes programas da Internet muito intrusivos; o computador anda a tentar que eu faça o “upgrade” sempre que aqui venho, mas sempre que faço um “upgrade” é uma coisa terrível, detesto fazer isso. E ele agora obrigou-me a actualizar o sistema antes de me deixar falar consigo”. Uma anedota muito apropriada a este cineasta sexagenário, nostálgico, amigo da subtileza e adversário do “chauvinismo do presente”. Nenhuma das quatro longas-metragens de Stillman (“Metropolitan”, 1990, “Barcelona”, 1994, “The Last Days of Disco”, 1998, “Damsels in Distress”, 2011) se estreou em Portugal, e o IndieLisboa decidiu corrigir a lacuna mostrando a integral deste “herói independente”. Nascido na esquerda caviar americana, filho de um político Democrata, John Whitney Stillman estudou em Harvard e trabalhou como editor, jornalista e publicitário. Viveu em Espanha, onde esteve ligado á indústria cinematográfica. Enquanto cineasta, é um mestre das comédias romântico-irónicas. Conversado, mostra-se curioso, espirituoso, afável, tímido também. Gosta de raparigas bonitas e de boas maneiras, de divertimentos elegantes e de teorias descartáveis, de ideais elevados e de fracassos honrosos. É um Rohmer americano, um Hal Hartley da classe média-alta. E o pai espiritual de Wes Anderson e Noah Baumbach.
Tem sido um nome um pouco esquecido na história do cinema independente americano. Talvez porque escreve sobre pessoas que não são o tipo de pessoas de quem os espectadores de cinema independente gostam.
Acho que tem razão. Falta esse elemento de identificação. Além disso, os meus filmes são comédias, e as comédias em geral ficam um pouco esquecidas, são subvalorizadas.
Mas alguns dos filmes do Noah Baumbach e do Wes Anderson são comédias…
Quando o Noah ficou famoso, não foi com comédias. Só se tornou conhecido quando fez filmes “sérios”. O Wes é um caso à parte, é mesmo um caso excepcional.
Há dois aspectos em que as suas personagens são muito distintas das personagens mais típicas do cinema independente americano. Por um lado, são burgueses muito conscientes da sua classe, da sua pertença classista, e falam disso, teorizam acerca disso; por outro lado, os diálogos, mesmo das personagens jovens, são em frases completas, gramaticais, especulativas, o que não é, digamos, o modo como os jovens se exprimem.
É verdade que no “Metropolitan” eles discutem muito as classes sociais, mas nos outros filmes já não falam tanto disso. Quanto a dizerem frases inteiras, por um lado é uma escolha estílica; eu não estou muito interessado numa “verité” que é bastante falsa, porque acho que o cinema tem de ter a sua verdade própria; uma certa estilização faz parte do processo ficcional, e não devemos pedir desculpa por isso, isso tem a sua força e a sua beleza. Quando se diz que “as pessoas não falam assim”, bem, muitos dos meus colegas de escola e amigos conhecem pessoas que falam assim, e portanto trata-se de uma representação bastante fiel de certos subgrupos.
“Metropolitan” é sobre uma categoria de pessoas de quem estava preparado para não gostar: debutantes e “socialites”. Mas depois conheceu-as e achou-as muito simpáticas.
Foi a ultrapassagem de uma limitação, devido à minha família e à maneira como fui educado. O meu pai era de esquerda, politicamente progressista, mas quando tinha a idade daquelas personagens andava sempre em festas. E depois casou-se com a minha mãe, que vinha de Filadélfia, a cidade mais snobe dos Estados Unidos. Eu sentia uma espécie de desprezo por esse mundo, o que é típico de quando somos novos. E isso tornou o tema interessante para mim, porque era uma espécie de transformação.
Uma das personagens do filme passa por esse processo, sente-se um pouco “outsider”.
Ele é conceptualmente um “outsider”, mas o apartamento do pai fica ao lado dos outros apartamentos que vemos. Muitas vezes as pessoas queixam-se de um grupo mas pertencem a um grupo muito parecido.
Os pais são figuras ausentes…
O centro do filme decorre entre a 1 da manha e as 6 da manhã, depois daquelas festas todas. Os pais estão a dormir (risos). Depois, na segunda semana, os pais foram-se embora. Portanto é aquele momento mágico em que os miúdos podem ficar sozinhos naqueles apartamentos enormes. Além disso, quando se faz um filme independente, ajuda que seja com personagens entre os 16 e os 28 anos, porque há muitos actores bons em começo de carreira, e que não têm salários dispendiosos, agentes, pretensões; actores muito entusiastas, que querem fazer coisas, e é fantástico fazer um filme com gente dessa idade. Termos actores adultos, a fazer de pais, era muito mais complicado.
Demonstra algum fascínio pelos códigos e convenções daquele grupo de pessoas. Uma das personagens comenta mesmo, referindo-se a um título do Buñuel: “a burguesia tem mesmo muito charme”.
É verdade (risos). Sinto uma certa atracção pelos grupos em declínio. E esta é uma parte da burguesia que está em declínio. Não diria que toda a burguesia tem charme, há burgueses sem charme nenhum, sabemos bem disso. Mas este segmento da burguesia tem algum charme.
Num diálogo do filme, diz-se que aquilo que a Jane Austen escreveu parece talvez ridículo visto de agora, mas que, do ponto de vista da Jane Austen, o nosso tempo pareceria ainda mais ridículo. É muito importante para si essa ideia de julgar o presente segundo valores que não são os do presente.
É verdade. Porque sinto que há um terrível chauvinismo do presente, que não contribui para a nossa educação. Eu adoro ver filmes antigos, porque sei muitas coisas sobre o mundo de hoje, e não sei muito sobre o mundo do passado. E adoro ler romances escritos no passado, e ver filmes antigos, especialmente filmes sonoros do período 1928 a 1941. É o meu período favorito, e vejo tudo o que posso.
Acha que esse seu gosto por uma certa nostalgia se pode confundir com conservadorismo?
Acho que todas essas palavras podem ter os seus aspectos positivos e negativos. Estou neste momento a montar um filme que se passa em 1795, e tenho lido muito sobre essa época. Adoro o século XVIII, adoro a música e as ideias, portanto tenho de reconhecer que na arte há épocas gloriosas. É espantoso como certas formas atingem tão cedo o seu esplendor. Jane Austen é, do meu ponto de vista, a primeira romancista moderna, e também a grande romancista moderna. Muitos dos romances e filmes de que eu gosto são anteriores a 1940, por isso tenho de reconhecer que algumas formas contemporâneas não são tão boas como algumas formas do passado.
Em “Metropolitan”, a certa altura, vemos a capa de um livro famoso, “O Declínio do Ocidente”, talvez porque as personagens têm noção de que pertencem a uma classe em declínio…
É, são todas essas coisas em declínio. É um daqueles livros que eu sempre quis ler, e tem um título muito romântico, mas na verdade ainda tenho de ler [Oswald] Spengler e aprender mais sobre esse assunto. Como sabe, porque eu menciono isso num dos diálogos do filme, prefiro ler as críticas aos livros e não chego a ler os livros (risos).
Acompanha personagens que se definem como pertencendo à “alta burguesia urbana”, mas que, de certo modo, são aristocratas, uma classe que, na América, parece uma contradição nos termos.
Há essa contradição, porque eles têm alguns atributos de uma aristocracia, há todo um historial das gerações, das tradições; mas, porque são burgueses, têm de ser sentir úteis no mundo actual. Um verdadeiro aristocrata sentir-se-ia confortável se não trabalhasse, enquanto um burguês tem de se sentir validado pelo mundo do trabalho. Eles têm de fazer qualquer coisa produtiva, e falam muito daqueles actividades meio míticas, como as fundações, “dar dinheiro às pessoas, que admirável”.
Estas personagens gostam de julgar os outros, mesmo quando não têm informação suficiente.
Acho que a reputação é importante para as pessoas. É o nono mandamento.
“Barcelona” nasceu da sua experiência de viver em Espanha, um país que atravessava então grandes mudanças. É um filme com uma dimensão política, nomeadamente quanto ao modo como os americanos são vistos na Europa: imperialistas, quase fascistas.
Comecei a escrever o guião de “Barcelona” em 1983, e é incrível pensar como era politicamente tão intensa essa última década antes do fim da Guerra Fria. Em Espanha discutia-se muito a questão de pertencer ou não à NATO. Para um americano era bastante estranho assistir a esse debate apaixonado, porque para nós é um tema pacífico. Mas as coisas nos Estados Unidos também se estavam a politizar bastante, porque a administração Reagan tinha uma perspectiva mais de “falcão”, e havia a Nicarágua e tudo isso; portanto, o filme fala dessas polémicas espanholas e americanas, e acaba por ser um filme bastante político.
Quando assistia a todos aqueles debates ideológicos e teses conspirativas, sentia-se, enquanto americano, ofendido, divertido, envergonhado?
Eu estava como que casado com a Espanha, porque casei com uma mulher de Barcelona, mas sentia-me um estranho. Depois disso, tive oportunidade de viver em países europeus, e habituei-me a essas controvérsias. Eu sou americano, identifico-me genericamente com o meu país, não digo mal do meu país, sou um americano com um ponto de vista americano. Mas identifico-me com vários países, e compreendo o ponto de vista desses países. Quando fiz “Barcelona” fiz o filme como um americano que reagia contra o modo como a América era vista pelos europeus. Mas só o filmei em 1993-94. A Guerra Fria tinha acabado, e muitas daquelas tensões tinham desaparecido. O filme reflecte aquilo que senti em Espanha no princípio dos anos 1980.
As personagens, dois primos americanos, falam de Espanha de forma um pouco equívoca, por exemplo quando se referem à promiscuidade das mulheres espanholas…
Não são as mulheres espanholas, são as mulheres de Barcelona. As mulheres da Catalunha eram consideradas “muy lanzadas”, e a minha mulher e as amigas dela tinham muito orgulho nisso, serem consideradas a vanguarda da revolução sexual ou coisa assim.
E as personagens masculinas não sabem muito bem como lidar com isso.
Pois não, não sabem (riso embaraçado, prolongado).Uma das personagens lê a Bíblia escondida no “Economist”, como se quisesse o auxílio da religião, da certeza, mas não o pudesse demonstrar. E há muitas outras coisas escondidas, coisas de que não se fala. Fred pergunta ao primo: “o que é que está acima do subtexto?”. Ted responde: “o texto”. E Fred comenta: “pois, mas nunca falam disso”.[Stillman ri com gosto, como se não se lembrasse do brilhantismo dos seus diálogos].Eles falam muito de objectos culturais, de detalhes linguísticos. E das canções populares como guias da nossa vida afectiva.Há períodos em que as canções são realmente boas, e outros em que nem tanto. Todas as formas de expressão têm uma espécie de período primitivo, e depois um crescendo, e depois uma decadência. E às vezes é difícil separar isso da nossa experiência autobiográfica, das canções de que ouvíamos quando tínhamos 14 anos ou assim. Mas eu tive muita sorte em ter essa idade quando havia música popular muito boa, e ainda gosto muito dela.
Em “The Last Days of Disco” tenta recuperar um estilo musical muito hostilizado. Interessava-se pelas discotecas como sítio de convívio e de, como escreveu, “troca de pontos de vista” (risos)? Ou quis simplesmente reviver um género considerado ultrapassado?
Quando estávamos na rodagem de “Barcelona”, houve problemas de organização, tivemos de filmar muitas cenas noite dentro, e estávamos todos exaustos. E depois filmámos uma cena numa discoteca, com todas aquelas mulheres atraentes de Barcelona. Divertimo-nos muito. E as raparigas eram tão bonitas. Os meus filmes não são considerados muito “cinematográficos”, não têm grandes achados visuais, ou de fotografia, mas no mundo das comédias românticas ter mulheres bonitas numa discoteca é mesmo muito “cinematográfico”. Essa foi a origem da ideia: ter duas mulheres muito bonitas numa discoteca. E a Chloë Sevigny e a Kate Beckinsale certamente cumpriam esse desígnio. Quando escrevi o filme, não me interessavam tanto as discotecas mas acompanhar pessoas acabadas de sair da universidade. Quando trabalhei numa agência noticiosa, saía às 2 e meia, e um amigo de Harvard, muito sociável, muito decadente, que ia ao Studio 54 todos os dias, disse-me que eu ia tinha de ir. Era um dos poucos sítios onde podia ir depois das 2.30. E levou-me lá a meio da noite, eu ia com a minha namorada da universidade. Tinha muito medo do Studio 54, achava que ia encontrar gente estranha. Mas era um meio muito parecido com o dos debutantes, um sítio onde as pessoas se encontravam, formavam pares, faziam a sua vida social.
Gostava da música disco?
Gostava, porque tinha havido uma série de anos quase sem vida nocturna, sem sítios para ir, para dançar, sem festas, e a música disco representava o regresso dessa vida social. E continuou. Dizem que a música disco morreu, mas essa ideia de vida nocturna continuou. Agora talvez esteja menos pujante, mas durante anos houve essas discotecas todas e foi óptimo.
As personagens parecem consideram-se mais selvagens do que são, não acha? Na verdade são todas decentes e pacatas.
É um grupo muito calminho [“a pretty sedate bunch”]. E a visão de que as coisas foram muito selvagens é um bocado exagerada. Depende do sítio. Muitas pessoas que iam a essas discotecas não faziam nada especialmente selvagem, e só mais tarde é que líamos coisas sobre uns quartos nas traseiras e coisas dessas. Mas eu nunca dei por nada. Nunca vi sequer ninguém a tomar drogas, nessa época. Acho que cada um escolhe o seu grupo.
A cena nocturna que associamos à música “disco” não é aquela que encontramos em “The Last Days of Disco”…
Não é, mas acho que eu fui mais fiel ao que realmente aconteceu.
Depois de um longo hiato, regressou com “Damsels in Distress”, espécie de musical passado numa universidade. As suas personagens são bem-intencionadas, doces até, mas também um pouco loucas. Querem fazer coisas boas mas por más razões, dão lições sobre higiene e prevenção do suicídio, conselhos conjugais…
Loucas é uma boa palavra. O filme foi muito criticado, mas eu gosto muito dele, é talvez o meu favorito, e espero que, com o tempo, venha a vingar, vai demorar até que as pessoas gostem dele.
Recebeu críticas muito parecidas às que dirigem a alguns jovens realizadores que influenciou, críticas de preciosismo e de ligeireza.
Muita gente percebeu as intenções do filme, nomeadamente em França. Mas penso que às vezes as pessoas que gostam muito dos nossos filmes se sentem como que donas do que nós fazemos. Muitas das pessoas que reagiram mal a “Damsels” foram as pessoas que gostaram muito de “Barcelona”, o “Barcelona” é um filme muito americano, foi o que teve mais sucesso na América, é muito certinho. Os meus três primeiros filmes são essencialmente naturalistas; têm coisas divertidas, mas tentam ser reais…
Enquanto que «Damsels” tem a lógica de um musical…
“Damsels” é um musical, estilizado, e nesse sentido não é realista. Mas é muito pessoal, trata de assuntos importantes, é profundo de uma forma um pouco louca. Estou muito interessado em continuar esse caminho, porque o naturalismo já não me fascina. Comecei a trabalhar com actores cómicos, que trazem uma criatividade e um universo diferentes. Por isso o novo filme, “Love and Friendship”, uma adaptação de um romance incompleto da Jane Austen, também é divertido. E também aprendi com o episódio-piloto que dirigi, “The Cosmopolitans” [2014, Amazon Studios]. Espero que a série funcione. Querem que escreva mais sete episódios. “Love and Friendship” mantém a estilização cómica de “Damsels in Distress”. É com a Kate Beckinsale, que agora é uma estrela, e com a Chloë, que agora é uma estrela, e espero que tenha uma boa distribuição. Os outros filmes foram feitos para estúdios, que estavam relutantes em estreá-los em sala.
Há uma genealogia literária dos seus filmes: gosta de autores que falam de usos e costumes, dos jovens, das estratégias amorosas: de Austen a Waugh, passando por Fitzgerald. E talvez Edith Wharton.
Mais do Salinger, diria.
Agora que adaptou Jane Austen, ainda pensa que ela acharia a nossa época tão ridícula como certas pessoas acham ridículos os tempos dela?
Espero que ela não mudasse, não se vergasse, mantivesse os seus padrões. Espero que se mantivesse muito crítica.
Créditos: Pedro Mexia/Expresso