O cinema belo, frágil e contemplativo de Tsai Ming-Liang está de volta. Kang, (o seu actor habitual Kang-sheng Lee) é um homem só que vive na sua casa e que sente uma misteriosa dor. Non vive em Bangkok num pequeno apartamento. Quando os dois se encontram, partilhando a sua solidão, a arte do realizador taiwanês explode lentamente num conjunto infinito de significados. Rizi esteve em competição no último festival de Berlim.
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Há duas coisas sempre presentes no cinema de Tsai Ming-Liang. A primeira é a expressão da amizade pelo seu actor Kang-sheng Lee. A segunda é uma minuciosa capacidade de observação e escuta da realidade, o que faz com que cada filme parece um refinamento no anterior. Os dois elementos estão presentes em Rizi, um filme que parece ser feito contra a solidão, a do realizador e dos seus personagens. Kang vive atormentando por uma dor de costas, algo que o cinema de Liang vem aflorando ao longo da sua obra. Por sua vez, Anong Houngheuangsy é massagista e habita num apartamento em Bangkok, no qual prepara as suas refeições. Propositadamente não legendado pelo autor, este é um filme de comunhão que não passa pela palavra. Antes pelo encontro dos corpos, por uma singela caixa de música ou pelo habitar de um espaço urbano no qual a intimidade é nuance em atribulada atmosfera sonora. É na duração dos planos que se jogam as decisivas mutações da realidade. (Carlos Natálio)
O que acontece quando soubermos que vamos morrer? A luz mudará? Os pássaros piarão mais intensamente? A morte vem habitar a relação de duas mulheres, juntas há muito tempo. Uma delas doente terminal, a outra irá ficar e deve cuidar. Os dias passam nessa atmosfera de despedida. Numa pequena casa de bosque permanecem o amor das duas, as conversas, o toque dos corpos, a memória. Mas, implacável, o desespero vai cavando fundo os rostos no grande plano.
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Duas mulheres reais, dois rostos, um beijo, um abraço. Esta demonstração de amor absoluto lança o filme de Torres Lleiva numa torrente de emoções. Percebemos um mal à l’aise constante que contamina a relação mas não sabemos porquê. Estamos convidados para o meio de uma relação como confidentes. A partir de um momento percebemos tratar-se de uma doença, essa “coisa” instalada que mata e não vai desaparecer. E é aqui que tudo se ajusta, com avanços e recuos, como é próprio da incerteza. São raros os filmes que criam nós que não deslaçam, mas em que a sua ternura permite que qualquer lampejo que surge seja uma tábua de salvação. E é por isso que o filme inclui histórias de outros tempos que nos ajudam a compreender o seu presente. Este cinema de Lleiva é repleto de planos de rosto e de corpos exauridos, e mostra que mesmo na dor é possível mostrar sensualidade. Vendrá la muerte e tendrá tus ojos é daqueles filmes em que apetece ficar para toda a eternidade. (Miguel Valverde)
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Filmado em 16mm, a primeira longa de Camilo Restrepo (La impresión de una guerra, IndieLisboa 2016 e Cilaos, IndieLisboa 2017) é uma fuga, uma alucinação e uma febre. Pinky escapa a uma seita e refugia-se numa fábrica de t-shirts ilegais. Há uma hipnótica viagem a fazer por corredores, tintas, slogans e armas. O objectivo é a libertação. Um cinema que sonha uma outra Colômbia: sem opressão, corrupção ou instrumentalização religiosa.
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Um foragido escapa da sua seita religiosa e tem dificuldade em misturar-se com o mundo exterior, ainda imbuído da violência que testemunhou e instigou. Na sua primeira longa-metragem, o realizador colombiano Camilo Restrepo inspirou-se na história verdadeira do amigo Luis Felipe Lozano, “Pinky”, que interpreta o seu papel em Los conductos. É um filme habitado pela violência, um conto filosófico e fantasmagórico que nos leva aos limites da instrumentalização da religião e da violência generalizada na Colômbia. É um filme catártico que Restrepo oferece ao amigo, numa forma de docu-ficção filmada em 16 mm. O filme apodera-se de vários símbolos, bem como de uma certa teatralidade para melhor representar as emoções internas de Pinky, numa montagem fragmentada. Entre passagens realistas e projecções assustadoras, a jornada de Pinky não é fácil. Após o homícido, supostamente para libertá-lo da sua doutrinação, a sua raiva permanece num mundo que se recusa a abrir-lhe as portas. Diferentes figuras históricas ou literárias da cultura colombiana visitam-no para o confrontar com os dilemas morais que enfrenta. Porque se na nossa realidade o homícidio não aconteceu, na de Los conductos leva a um questionamento sobre conceitos fluídos como Bem e Mal, que Pinky tem dificuldade em conceber quando pensou durante tantos anos ser um “Eleito”. (Mickael Gaspar)
Quinze bailarinos, em tournée, dançam a peça Crowd da coreógrafa Gisèle Vienne. O palco é pista de dança, em homenagem às raves dos anos 90. Impulsos eróticos, encontros aleatórios, amor em super slow motion. O realizador documenta o seu trabalho, mas eis que a dança cai no abismo criativo do cinema. E as fronteiras – entre corpos, entre relações, entre palco e realidade – tornam-se cada vez mais fluídas, nesta jornada através da noite, do amor e da dança.
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If it Were Love não é apenas uma excepcional oportunidade, para quem não viu a sua apresentação em Lisboa, de conhecer o trabalho da coreógrafa Gisèle Vienne em Crowd. Aliás, talvez seja ainda mais valioso como revisitação minuciosa das suas personagens e movimentos, engenho brilhante que se deve a Patric Chia, que dirige o olhar do espectador para uma confusão entre realidade e ficção, ao filmar os corpos dançantes, mas também as conversas de bastidores. O filme provoca o mesmo transe em que estão as personagens, no palco ao som da música rave dos anos 90, e ninguém se quer libertar. Patric Chia continua a explorar o mundo das emoções humanas mais profundas, nas suas dimensões autênticas e performativas, com uma linguagem autoral vincadamente expressiva e singular. (Mafalda Melo)
Joana d’Arc é um símbolo da espiritualidade ocidental e o coração da psyche social francesa. Em 2017, Dumont realizou Jeannette, l’enfance de Jeanne d’Arc, um musical baseado numa peça de Charles Péguy. Jeanne é a sequela que recupera, do filme anterior, Lise Prudhomme, de apenas 10 anos, para encarnar a heroína. Não estamos aqui no realismo histórico, mas sim na modernização de um mito a partir de uma infância que se renova, de uma condição feminina que se liberta.
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Bruno Dumont adapta novamente textos de Charles Péguy dedicados à figura histórica de Jeanne D´Arc. Estamos em 1429, Jeanne é presa e julgada. Depois de uma Jeannette dançante e despreocupada, esta segunda parte parece mais austera e teatral, mas revela-se mais sensível e majestosa. A expressão do corpo dá lugar à expressão do verbo. O filme já não é uma comédia, como o foram as suas obras desde a série Le P’tit Quinquin. O cineasta parece reavivar a sobriedade do passado e escolhe relatar os eventos (uma guerra, um julgamento, uma igreja) unicamente pelas vozes, sejam elas um comentário (as personagens são como os apresentadores de rádio da acção), um interrogatório, ou uma música. Essas disputas oratórias tornam-se fascinantes e conseguem pela força da evocação substituir a acção. Cada palavra, interpretada com fragilidade por actores não profissionais, tem um timbre e enunciação singulares. Com uma distância totalmente brechtiana, o jogo vocal não preserva menos o mistério de Jeanne e o nosso fascínio. O cineasta questiona a nossa relação com a espiritualidade. O profano e o sagrado se misturam-se, à imagem do cantor Christophe, um convidado improvável do cinema de Dumont. (Mickael Gaspar)
Concebida ao longo de uma década, a primeira longa do animador Mariusz Wilczyński mostra-se bem nesse doloroso e cru olhar para trás. A cidade de Lodz possui uma atmosfera beckettiana e autobiográfica, um espaço industrial, pejado de fumos, luzes fortes e agrestes, personagens bizarras. Os episódios trágicos e satíricos, como a morte e preparação do corpo da sua mãe para o enterro, ou as visitas atribuladas com o pai, habitam a memória labiríntica do cineasta.
Sabemos como os membros de certas seitas religiosas acabam por viver apartados da realidade. O filme de Kristoffer Borgli (Whateverest, IndieLisboa 2013) é sobre uma dessas jovens que nunca tinha ouvido música. Até agora.
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Um dos raros casos em que o título do filme é a própria sinopse. Assistimos como que a uma experiência sociológica em que um ex-membro de uma seita, que viveu isolado do mundo, ouve pela primeira vez música. E o poder da música é enorme e imprevisível. Borgli constrói uma comédia inteligente e ousada, de consequências trágicas, que é também uma sátira à sociedade norte americana. (Carlos Ramos)
Simbologia literal. As raízes do cinema nas mãos de Canapa são pedaços de rabanete negro utilizados em película não impressa. Explosões sonoras de luz a furar a emulsão fotoquímica, viagens ao fim do material, o inconsciente ótico de um épico cosmológico.
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O cinema como uma experiência de transe. Um transe o mais próximo possível da matéria do cinema quanto possível. No seguimento de “A Radical Film” (2017), Stefano Canapa experimenta novamente com rabanete preto em película não exposta para fabricar uma sinfonia sónica e visual de intensidade galvanizante. Enquanto o filme explode nas nossas caras a preto e branco e violentamente metamorfoseia padrões indomáveis em outros, perguntamo-nos para que espécie de corpo cósmico estamos a ser sugados, se uma superfície lunar se um buraco negro. Ou será a tela do cinema? (Ana David)
O cinema como pesadelo de Deus. Nesta comédia metafísica, Deus teme a queda da sua condição superior. Os fragmentos de toda a história do cinema são o espelho alucinado dessa forma inferior, desse ser um homem.
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God’s Nightmares apropria-se de imagens de outros filmes para pensar no que seriam os pesadelos de Deus. Um filme de montagem alucinadamente cómico que procura o sentido neste monólogo interior divino, onde o maior medo é ser só mais um homem. (Duarte Coimbra)
Mark Jenkin, que venceu em 2019 o prémio do público para melhor longa metragem do festival (Bait), faz agora um filme sobre o poder assombrado da criação. Uma jovem poeta encontra uma mala com as suas iniciais. Lá dentro um fantasma que procura quem lhe termine um poema.
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Uma mala, um poema, personagens que transitam em acasos, e projecções, num jogo de espelhos e coincidências (a mala é responsável). Os fantasmas acordam e a narrativa compõe-se, fragmenta-se, destrutura-se, enquanto sinais duma maldição emergem e multiplicam-se neste drama negro. O contágio está na criação, está na maré do ‘‘vento’’ que açoita os planos, pelo olhar sedutor de Jenkin que talha e retalha esta inquietante e cortante narrativa, black and white. (Carlota Gonçalves)
A dupla Dornieden e Monroy, também conhecida por OJOBOCA, trabalha a ficção e a fábula a partir de argumentos científicos. Aqui essa base é a investigação sobre o auroque, uma espécie de bovino selvagem, primeiro caso documentado de extinção no séc. XVII. Com recurso a película em 16mm e uso inventivo do som, o desaparecimento e a tentativa de recuperação deste mítico animal é o ponto de partida para uma relação com uma também mítica noção de Europa.
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O Auroque ou Uruz é uma espécie do gado bovino selvagem que habitou regiões da Europa, Ásia e norte de África. É considerado o antepassado do atual gado doméstico e é o primeiro caso de extinção a ser documentado, como consequência da elevada caça à espécie e da introdução do gado moderno. Acredita-se que o declínio e extinção dos últimos Auroques selvagens se verificou em 1627 na floresta Jaktorów, Polónia. Apesar de o Auroque ser considerado fonte para alimento, distingue-se pelos seus traços físicos como a força, velocidade, resistência e coragem. Contudo, estes traços físicos interligam-se com poderes simbólicos, derivados de uma superstição associada a certas integrantes do animal. Elementos como a pele do crânio e um osso em forma de cruz perto do coração eram cobiçados pelas suas propriedades mágicas e sobrenaturais.
Her Name Was Europa, primeira longa-metragem de Juan David González Monroy e Anja Dorniden explora, com um olhar clínico, as tentativas modernas de ressuscitar o Auroque da eterna extinção. (Inês Lima Torres)
Este filme não é falado e nem legendado em inglês.
Na sua secretária na biblioteca Brynmor Jones, o poeta Philip Larkin tinha uma fotografia de Guy The Gorilla, atracção no zoo de Londres. Esta breve colagem de Sutcliffe é uma meditação acerca do trabalho e da forma como este pode ser uma prisão.
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Guy era um gorila famoso no Zoo de Londres pela sua disposição gentil e por receber doces dos visitantes. Aqui, a sua vida interior é talvez mais semelhante à de um detetive de algum filme noir de uns anos oitenta repletos de solos de saxofone, que comenta de forma vaga a experiência humana. Um contraste capaz de causar um sorriso no mais empedernido dos rostos. (Ana Cabral Martins)
A existência é uma complexa teia de acontecimentos trágico-cómicos. Tudo se liga com tudo. Um trauma de escola, uma visita a um amigo numa instituição psiquiátrica, diagramas infantis, desenhos com tinta, filmes super 8 e esculturas de plasticina e madeira.
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Na construção das memórias de infância não é necessário obedecer à lógica da idade adulta. A memória não tem de ser verdade factual, pode ser poética, afectiva e absurda. Como tinta derramada no leite, as imagens formam-se numa mistura líquida que evoca uma dança. As ideias vão surgindo sobrepostas em desenhos, gráficos, rabiscos e esculturas, que reproduzem com extraordinária liberdade artística um universo infantil onde o sujeito tem ainda poder para criar a sua própria narrativa. (Margarida Moz)
Como acontecia com Éric Rohmer, que sempre gostou de trabalhar por séries de filmes, também Piñeiro tem-se dedicado àquilo que chama de “Shakespereadas”. Filmes que adaptam comédias do dramaturgo inglês às relações de uma geração contemporânea jovem. Aqui a peça é Medida por Medida e no seu centro está um mosaico preciso, de temporalidade não linear, em que as escolhas profissionais e pessoais da actriz Mariel (María Villar) são postas em equação.
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Os filmes de Piñeiro são como ele próprio: sóbrios, elegantes, distintos e especiais. Isabella, nome de uma personagem de Shakespeare, é a aspiração de Mariel que quer representá-la mas tem dificuldade em concentrar-se por problemas financeiros. O filme nunca é simples na sua construção e o espectador é convocado para deslindar as inúmeras possibilidades de narrativa que cada plano nos dá. Assim, quem olha o quê, como na magnífica entrada em que vemos uma pessoa ao fundo de um pequeno cais e vamos rever este plano mais vezes e de diversas formas. No cinema de Piñeiro as personagens tomam as dores de quem querem representar como se a vida não passasse de um jogo de representação, o que significa um pensar fino e crítico sobre a sociedade contemporânea. Não é à toa que aproveita o universo shakespeariano dos grandes temas para estabelecer um ponto universal comum, para depois ter liberdade de falar do que lhe interessa. O seu grande poder é tornar as coisas simples e cheias de significado. (Miguel Valverde)
Um rapaz dança e imita Michael Jackson perante a música electrónica de Wilbert Gavin. Improvisação, libertação e energia.
Quantos e-mails recebemos como spam e vai-se a ver são missivas que nos informam de problemas maléficos na nossa galáxia vizinha? Quantos e-mails nos dizem que temos um gémeo galáctico que nos chama para o ajudarmos? Svirsky regressa ao IndieLisboa (Lavo, 2019).
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Um dia Sasha Svirsky recebe um email do seu irmão gémeo galáctico Galaction a pedir ajuda na luta contra o mal numa galáxia vizinha. Primeiro pensa que é spam. Depois começa a aventura. Uma animação genial e divertida, feita de explosões de cor e um rigoroso caos de imagens e de ritmo. Sete minutos de puro prazer. Chegarão para salvar o mundo? (Carlota Gonçalves)
Vasos comunicantes. Fenómeno pelo qual um fluido se distribui de forma equilibrada em recipientes de formas ou volumes diferentes. Esta curta, premiada em Roterdão, aplica essa ideia ao que sucede nas relações humanas, em especial professor e aluno.
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Partindo do trabalho de Dennis Oppenheim, Lygia Clark e Joan Jonas, o filme relata a experiência de uma professora de cinema experimental com uma aluna, interessada na prática da performance para a câmara. Uma voz doce descreve e analisa o resultado dos exercícios, percorrendo uma história crítica do período seminal da vídeo-performance. Tudo se complexifica quando o formalismo dos gestos se verte em sofisticada metáfora do relacionamento interpessoal, do ensino das artes, da parentalidade, da alteridade, do próprio acto de ver e… de ser. (Ricardo Vieira Lisboa)