As notícias da morte de Josef Stalin em Março de 1953 deixaram a URSS em estado de choque. A partir de imagens de arquivo, a maioria inéditas, Loznitza mostra-nos todos os procedimentos desde o anúncio de morte às cerimónias fúnebres. Alternando o preto e branco com a cor (em especial o vermelho associado ao regime), mas também os rostos tristes, as lágrimas, as pessoas de luto, tudo torna evidente o culto em torno da personalidade do líder soviético.
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O realizador ucraniano Sergei Loznitsa (The Event, The Trial) convida-nos a viver os quatro dias da despedida do “”amado líder do povo soviético”” Joseph Stalin em Março de 1953, “”não como observador de um evento histórico ou admirador de raras imagens de arquivo – mas como participante e testemunha de um espetáculo grandioso, aterrador e grotesco ‘, nas suas próprias palavras. A natureza opressiva do regime soviético é revelada através do ritual: a procissão interminável de enlutados alinhados à frente do caixão em Moscovo, os discursos profetizando a imortalidade do líder alcançando os cantos mais longínquos da terra soviética na montagem elíptica de State Funeral. Loznitsa compõe perfeitamente faixas cor de sangue e ruas movimentadas a preto e branco, flores de plástico e lágrimas genuínas, criando um pesadelo vertiginoso de filme, que nos desperta em suores frios. (Anastasia Lukovnikova)
A minha avó não é como as outras. O seu Édouard morreu faz tempo, mas ela não dá espaço à solidão. Veste-se de cores garridas, envia e mails às amigas e domina a internet. É uma rainha entre os seus gadgets e a restante memorabilia. Este é o seu retrato.
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Suzanne é uma avó do século XXI. Emails, vários por dia. Tablets, na ponta dos dedos. Bitcoins, investimento mensal. O domínio da internet ocupa-lhe o dia, mas não apaga a perda do seu marido Édouard. Continua a falar com ele e as fotografias analógicas continuam a inundar a casa. Suzanne vive entre dois mundos, espaço que pertence aos fantasmas. Um filme que está constantemente a desafiar-se e a provocar-nos, mas nunca gratuitamente. (Carlos Ramos)
Em 2017, o realizador Louis Henderson e o produtor Olivier Marboeuf foram ao Haiti onde trabalharam com um grupo de artistas do país na tradução para crioulo haitiano e representação de uma peça. Tratava-se de “Monsieur Toussaint” de Édouard Glissant, que acompanha os últimos dias do herói da independência haitiana, Toussaint Louverture. Desse trabalho e de momentos de improvisação nasce o filme, obra colectiva de ressurreição e redenção histórica.
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Toussaint Louverture foi o grande líder da revolução haitiana que levou à independência do país que ocorreu já após a sua morte, tornando-se a primeira República negra independente das Américas. Que Haiti existe hoje na promessa dessa revolução? Como sentem os jovens do país a responsabilidade da descendência do herói haitiano? Num filme colectivo, polifónico, habitado pela alucinação e pela promessa de futuro, o grupo de teatro The Living and the Dead Ensemble traduz para crioulo haitiano e encena a peça “Monsieur Toussaint” de Édouard Glissant. São os últimos dias de Louverture, encerrado na sua cela na Cordilheira do Jura, nos Alpes, assombrado pelos fantasmas do passado revolucionário. Mas a figura literária e cultural haitiana por excelência é a espiral e, por isso, o filme escreve-se e brota de todos os lados. E são também as personagens do panteão histórico haitiano que vêm assombrar os actores que trabalham e vivem a peça em Port-au-Prince. (Carlos Natálio)
Numa escola filipina as alunas aprendem a fazer as tarefas domésticas e a cuidar de bebés. O objectivo é serem contratadas para trabalhar em casas no estrangeiro. Mas aprendem mais do que isso. Como lidar com a agressão verbal de uma patroa descompensada? Como reagir a um assédio sexual? Como suportar a distância e a saudade dos filhos que ficaram nas Filipinas? Este é um filme que reflete sobre a escravatura moderna num mundo globalizado.
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Overseas é um excepcional retrato de classe, género, condição humana, no qual ficamos a conhecer a realidade de algumas das Overseas Filipino Workers (OFW’s). Sung-A Yoon consegue traduzir tudo a que se sujeitam as mulheres filipinas quando aceitam ir trabalhar para outro país, para casas de pessoas que só conhecem de entrevistas por telefone ou skype. Para conseguirem atingir tal meta, enfrentam um treino rigoroso de preparação da separação da família e contra quaisquer agressões – físicas e verbais – tal é a certeza que esse é um desfecho possível. Mais do que um desfecho, um período de pelo menos dois anos que deverão enfrentar sem desistir. Estas mulheres juntar-se-ão aos 10 milhões de filipinos além-mar: outra expressão e outro filme não descreveriam melhor este sistema de escravatura moderna. Sung-A Yoon mantém intacto, contudo, o estoicismo destas mulheres, num filme humanista e delicado, uma surpresa imperdível. (Mafalda Melo)
Vernier é um grande e irónico observador. A partir de um workshop dado a alunos da Universidade de arte e design de Genebra, o realizador foi à noite suíça filmar conversas de uma juventude rica e extravagante, num retrato de luxo, vaidade e ostentação.
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Tempo de vacuidade, tempo jovem, o champagne corre e as conversas saem ligeiras como linhas de coca que desaparecem no riso de jovens amigos que se juntam em Genebra. Ostentar é uma figura natural que alimenta o tom e ‘’ter’’ é só uma consequência a desfrutar. Chiques e selectos baloiçam nas suas gaiolas douradas entregues ao jogo da fruição. A noite é toda deles. (Carlota Gonçalves)
A cidade de Hong Kong vive à espera de uma ruptura trazida pelo crescimento constante. A tapeçaria de imagens em 16 mm de Simon Liu reflete uma sinfonia urbana dissonante, entre momentos que alternam a alienação e os elementos da natureza.
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Tranches de vida citadina, ritmos mecânicos e sombras tremeluzentes compõem os retratos especulares de Simon Liu. Agora, a plasticidade da sua câmara de 16mm (que ora esbate as imagens em manchas, ora as revela na porosidade da película, em movimento desacelerado – criando poéticas cadências visuais), vê-se acompanhada de uma composição sonora que acentua o tráfego humano de Hong Kong e a incomunicabilidade numa metrópole . “Signal 8” descobre na dimensão pitoresca de um território a sua inquietação política. (Ricardo Vieira Lisboa)
A primeira ficção de Diop ergue-se sob uma outra “travessia”: o crescimento de uma adolescente francesa. Vanina, a passar férias nos Alpes franceses, deseja estar com a melhor amiga, mas é com Simon e Mary Jane, seus babysitters, que procura uma conexão.
Inspirado nos poemas gregos e latinos que davam lugar de destaque às artes da agricultura – como são os casos de Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo e de Geórgicas de Virgílio -, esta é uma obra que acompanha o trabalho no campo de uma família japonesa, numa pequena vila perto de Kyoto. Catorze meses de rodagem convertem-se nestas oito horas que são uma magnífica ode ao trabalho, à terra, à paisagem sonora e à passagem do tempo e das estações.
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Tayoko Shiojuri, agricultora, esposa e mulher que vive numa pequena aldeia perto de Kyoto, interpreta-se a si na segunda longa-metragem de C.W. Winter & Anders Edström (The Anchorage), inspirada nos poemas gregos e latinos sobre a arte da agricultura. Tayoko cuida da sua família da mesma forma que cuida da sua terra, e a repetição Jeanne Dielmann-esca das tarefas diárias, retratada com a sensibilidade peculiar da câmera de Edström e enriquecida com as paisagens sonoras de CW Winter, abre caminho para a nossa percepção, bem como as longas horas do filme. A profunda ligação às alegrias e tristezas de Tayoko e a permanência assombrosa da sua presença fazem com que se sinta – com uma força de partir o coração – a solidão e a paz de se cumprir o destino, respeitando os ciclos da natureza e os ciclos da vida humana. (Anastasia Lukovnikova)
Este é um filme que acompanha o trabalho do campo de uma família Japonesa em uma pequena vila próxima à Kyoto.
No final dos anos 90, Reinhart e Widrich inventaram o processo “tx-transform” que inverte os eixos cinemáticos do tempo e do espaço. Agora filmaram num cinema de Berlim, com 135 actores e usando uma OmniCam-360. O resultado é algo nunca antes visto.
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Os filmes de Virgil Widrich são epopeias conceptuais (mais difíceis de explicar do que ver). Após “Copy Shop” converter em fotocópias os fotogramas da rodagem, “Fast Film” aplicar essa técnica à história do cinema em origami e de “Black Track” regressar a essa espacialização em versão 3D translúcida, “TX-Reverse” retoma a técnica de inversão dos eixos espaço-tempo de “TX-Transform” com uma câmara de 360º 10K, numa sala de cinema onde se exibe o próprio filme. O resultado: uma sucessão de deformações dançantes que, no sumo da tecnologia, reduzem o cinema a uma arte das sombras. (Ricardo Vieira Lisboa)
Feito em VHS e recorrendo a imagens de Youtube, este é a história de um simpático serial killer: um jaguar chamado Valerio, que escapou do zoo de Nova Orleães, matando vários animais. Depois de capturado decide fazer um vídeo diário para a sua cara metade.
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Valerio é um dos dois jaguares no zoológico. Um dia escapa e faz uma matança. Valerio mata cinco alpacas, três raposas e uma emu antes de ser capturado e sedado. Neste estado dormente Valerio faz um diário à sua companheira, o outro jaguar chamado Lula. Valerio tem saudades de Lula e espera voltar a vê-la. (Rui Mendes)
Premiado no IndieLisboa em 2018 por Waste No.5 the Raft of the Medusa, o artista Jan Ijäs volta ao festival prosseguindo com a sua reflexão acerca da produção humana de detritos. Agora com um olhar particular sobre a tecnologia digital e seus paradoxos.
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E se de repente o desperdício se tornasse grandioso? Quando descobrimos que por debaixo de uma igreja ortodoxa (de Helsínquia) se encontra um servidor de dados mundial, que usa água reciclada para se arrefecer, confirmamos que nada é o que parece. A partir daqui iniciamos uma viagem à volta do mundo, passando pela Coreia do Sul, Gana e Turquia. A exclamação constante “How Great” vai passando a fazer parte do nosso léxico para nos pasmar, sempre. O mundo visto através da evocação do desperdício, só pode deixar o mundo alerta. Volta Greta! (Miguel Valverde)
Em 2014, o IndieLisboa mostrou a curta Quelqu’un d’extraordinaire, a estreia na realização de Monia Chokri que conhecemos dos filmes de Xavier Dolan. A sua primeira longa metragem desenvolve, numa hilariante e inteligente comédia, o mesmo tema do filme anterior: a passagem à idade adulta de uma jovem mulher. Neste caso, Sophia (a extraordinária Anne-Élisabeth Bossé), recém doutorada que, sem perspectivas profissionais, vive (ainda) com o seu irmão mais velho.
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Depois de o IndieLisboa ter mostrado em 2014 Quelqu’un d’extraordinaire, a estreia na realização de Monia Chokri, actriz de alguns filmes de Xavier Dolan, eis que nos chega agora a sua primeira longa-metragem. Inscrito na tradição do filme familiar quebequense, mas também na subtileza e cosmopolitismo de autores como Noah Baumbach ou Greta Gerwig, esta é uma comédia dramática acerca de uma jovem já não tão jovem, recém doutorada, que, sem planos de futuro, procura compensação emocional na relação com o seu irmão. A ironia constante é a grande arma de boa disposição maciça, mas, através da alternância entre o cómico e a dor verdadeira – algo que a actriz Anne-Élisabeth Bossé domina na perfeição – as personagens ganham outra vida e profundidade. Vamos sendo guiados pelos clichés da felicidade, mas onde La femme de mon frère podia apenas ser uma versão intelectual de Bridget Jones, é afinal um sensível filme sobre o crescimento e a humildade. (Carlos Natálio)
Mille Soleils, vencedor do IndieLisboa em 2014, conta o regresso da realizadora ao Senegal, revisitando dois atores do filme Touki Bouki (1971), realizado pelo seu tio, Djibril Diop Mambéty. Memórias reais e liberdades de ficção, o cinema e/é a sua família.
No ano passado o IndieLisboa, no programa Brasil em Transe, mostrou filmes de importantes autores do emergente e combativo novo cinema brasileiro, entre os quais Seus Ossos e Seus Olhos de Caetano Gotardo. Em 2018 tínhamos visto já As Boas Maneiras de Juliana Rojas e Marco Dutra. Agora, a dupla Gotardo/Dutra traz-nos uma história de duas famílias e de assombrações trazidas pelo espectro da escravatura, numa São Paulo da viragem para o século XX.
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Maria, uma freira, avança pelas escadas escuras com uma tocha na mão. Assustada, como se algo a observasse, espreitando no escuro. A cena parece um puro arquétipo do fantástico, mas nada, absolutamente nada será como esperamos em Todos os Mortos: nem o filme sobrenatural que imaginamos, nem o filme de época que parece evidente. A longa desenrola-se num momento crítico, no crepúsculo do século XIX, durante uma época de mudanças sociais no Brasil. Contudo, a mudança não se efectua com tanta clareza, nem no país, nem na casa rica dos Soares. A escravatura foi abolida no Brasil há dez anos, mas o que resta da mesma nas estruturas sociais, nas relações de classe? Para os Soares, a Europa é “a origem de tudo”, a África é um grande magma indistinto, o tom está nesta forma de paternalismo que os colonos imaginam benevolente e magnânimo. Todos os mortos observam a brancura e sua hegemonia de uma maneira sem precedentes num mundo que parece estar a avançar… mas será que está realmente a mover-se? Para quem? Estreada há alguns anos, a primeira longa metragem de Caetano Gotardo chamava-se O Que se Move. Um título que poderia ter funcionado aqui, num filme em que sentimos um mundo em turbulência e observamos outro que parece congelado para sempre. (Mickael Gaspar)
Trabalhadores de uma obra na capital do Senegal não recebem há meses. Um deles, o jovem Souleiman, decide atravessar o oceano em busca de uma melhor vida. Ada, de 17 anos, apesar de prometida a outro homem, espera o regresso do seu amor. Inspirada na figura de Penélope, mas também em Romeu e Julieta, Atlantique é um conto de espíritos, traumas e crescimento. Grande Prémio do Júri do Festival de Cannes de 2019.
Realizado quando ainda estudava cinema na Le Fresnoy, este documentário serviu de inspiração para a sua primeira longa metragem. Um relato de desejo de travessia do oceano por um grupo de amigos senegaleses, uma viagem que pode bem ser entre a vida e a morte.
Paulo não consegue pagar a pensão de alimentos à ex-mulher. Para poder voltar a ver o filho, começa a trabalhar como taxista nas noites do Rio de Janeiro. Pelas janelas do carro, pelas histórias dos seus passageiros, começa a viagem e a autópsia a uma cidade, onde o sol já só chega por miragem. Existências noturnas, sombras cansadas, solidão e silêncio que observam. Prémio de representação para Fabrício Boliveira no festival de cinema do Rio de Janeiro.
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Entregue à sua sorte, Paulo, recentemente divorciado, começa a trabalhar como taxista para sobreviver na grande cidade e pagar a pensão do seu filho de 10 anos. Enquanto conduz pelas noites intermináveis do Rio de Janeiro, acompanhamos o condutor no interior do seu taxi, por onde transitam passageiros que se conectam mais intensamente com a história de Paulo. Nesta crónica obscura e palpitante, a imprevisibilidade da noite ocupa o primeiro plano, onde as imagens oscilantes e claustrofóbicas nos antecipam a angústia.
Na oitava longa-metragem de Eryk Rocha, que passeia entre a ficção e o documental, sentimos as ruas do rio de Janeiro como uma espaço obscuro e decadente, e onde a esperança apenas renasce dentro do taxi, quando novos passageiros ajudam Paulo a ultrapassar a solidão e o caos urbano que enfrenta todas as noites. Apenas estes personagens poderão trazer novamente amor e felicidade à vida de Paulo. (Inês Lima Torres)
No período da ditadura argentina (1976 -1983), vários foram os cúmplices do sector social que contribuíram para a repressão, sem nunca terem sido responsabilizados. Em novembro de 2015, o Ministro da Justiça e Direitos Humanos elaborou um extenso relatório com 25 casos comprovados dessa responsabilidade por parte de várias empresas. Esse livro nunca foi publicado e Perel procura aqui torná-lo visível, defronte da sede de muitas dessas empresas.
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Neste “tipo de peça concebida especificamente para o local”, o realizador argentino Jonathan Perel (17 Monumentos, Toponymy) serve de detective, ao fazer uma viagem solitária de 14.000 quilómetros para revisitar as cenas dos crimes de repressão da ditadura de 1976 -1983 no seu país. Enquanto lê em voz alta relatórios oficiais sobre conspirações, sequestros e assassinatos, vemos as intermináveis vedações, emolduradas pelo pára-brisas do carro do realizador, filmadas às escondidas, durante o dia. Não são prisões que se vêem por trás das vedações, mas chaminés fumegantes das fábricas. As provas que Perel recolhe, seguindo o relatório recentemente publicado pelo estado argentino, serve para responsabilizar as empresas pelos seus crimes do passado, mas a falta de transparência, evidente no seu exaustivo catálogo de imagens, obriga também a fazer perguntas inconvenientes sobre o presente. (Anastasia Lukovnikova)