De 1922 a 1924, o historiador de arte alemão Aby Warburg esteve internado numa clínica psiquiátrica em Kreuzlingen, na Suíça. Acedendo aos seus escritos e a relatórios médicos desse período, esta é uma viagem pela sua mente, entre a loucura e a genialidade.
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Filme pequeno para o gigante Aby Warbourg, incontornável autor do museu Mnemosyne. A persistente memória visita elementos trágicos da vida do historiador de arte, na primeira pessoa. Diários e dados clínicos completam a biografia dum criador icónico. Uma enorme parede expositiva cresce e recua num progressivo afastamento imersivo; figuração do movimento do tempo, da imagem, do som. Momento evocativo e testemunhal da loucura de Warbourg, que nos torna cúmplices face a este insaciável criador. (Carlota Gonçalves)
Combinando técnicas de animação como o 2D, o 3D, a pintura a pastel sobre impressões live-action ou métodos como a pintura sobre vidro e serigrafia, esta é uma jornada onírica em torno de símbolos de morte, cores garridas e problemas sem resolução.
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“Um dia sonhei que não conseguia acordar de camadas e camadas de sonhos”. Nesta animação os sonhos exploram as contradições do eu recorrendo a diferentes técnicas para criar um universo surreal e psicadélico onde as cores resplandecentes e um trompete esfuziante disfarçam o lado mais sombrio das emoções. (Margarida Moz)
Imagens de simulação de uma multidão são confrontadas com os testemunhos de apoiantes do Liverpool que recordam a tragédia do desastre do estádio de Hillsborough em 1989, onde morreram 96 pessoas. Os estádios como lugar de libertação, mas também de controlo.
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Nicolas Gourault aplica as técnicas do seu trabalho nos Forensic Architecture ao contexto dos estudos na Le Fresnoy. Recorre às possibilidades da modelação 3D e dos programas de simulação de multidões, cruzadas com recolha de testemunhos e de materiais de arquivo (mapas, fotografias, reportagens televisivas) para dar corpo a um evento do passado que se esboroou nas memórias, mas que redefiniu a indústria do futebol. “This Means More” é um ensaio político, emocionalmente poderoso, sobre a natureza comunitária de um desporto que se tornou de elite. (Ricardo Vieira Lisboa)
No deserto de Mojave jaz a cidade inacabada de California, planeada nos anos 60 para receber centenas de milhares de habitantes, a par de Los Angeles ou San Diego. Mas não foi bem assim: vivem lá hoje, no meio de ruas vazias, pouco mais de 10.000 pessoas. O trio de realizadoras belgas segue alguns destes novos pioneiros que procuram novos começos, relatando as suas experiências, dando nomes às ruas, fazendo a pé longas viagens de exploração do espaço.
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Num dado momento de Victoria, o seu protagonista Lashay T. Warren filma-se em frente a um cano rebentado na rua jorrando água. Na imagem que capta consegue, a dada altura, descobrir um arco-íris e diz-nos: “perante uma coisa má, podemos sempre obter um arco-íris”. Este bem poderia ser o lema deste cronista da desolação, novo pioneiro, que, em 2016, foi viver com a sua família para Cal City. Esta é hoje uma cidade inacabada no meio do deserto, pois o plano que nos anos 60 foi concebido para que se tornasse um local de habitação para milhares de pessoas foi abandonado. Neste mundo de western desolado, Warren e outros colegas usam o telemóvel como bússola para identificar as ruas e manter os trilhos limpos. As visitas à vizinha L.A. fazem-se apenas através do google maps. As realizadoras Benoot, De Ceulaer e Tollenaere procuram refletir sobre subtis processos de segregação racial e espacial, mas também sobre o potencial criador de um espaço do qual somos descobridores. (Carlos Natálio)
Qual a distância que vai da dor ao prazer? Quais os limites da sensitividade do corpo? Inspirado nas imagens violentas, eróticas e sedutoras da pintora chilena Carmen Silva, tia do realizador, esta é a história de uma ferida que produz prazer.
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Um jovem sofre um acidente. O amigo ajuda. A mãe do amigo acolhe-o. A ferida que nasce é quente e uma perfeita atracção para o abismo. É neste contexto que o chileno Woodroffe (de nome inglês que contrasta com a sua latinidade), actua tirando partido de uma situação que nunca é comum. O ambiente familiar tem qualquer coisa de “fora do sítio”, e a casa aparentemente arrumada, está prestes a explodir numa energia contida. Woodroffe arrisca-se a ser o próximo “caso” chileno depois de Dominga Sotomayor. (Miguel Valverde)
Se não adormeceres vem aí o papão e leva-te! Na mitologia eslava quem rapta as criancinhas é Babai. O filme de Aisagaliev contém esse medo onírico do crescimento, mas é sobretudo uma vertiginosa viagem sensorial pelas primeiras impressões visuais e sonoras da infância. Dois irmãos e um pai bastante severo. O mundo rasga-se diante dos olhos, são memórias sem nitidez, pedaços de alegria, de humilhação. É a excitação traumática e cromática da infância.
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Artem Aisagaliev, nascido na Rússia e a viver nos Estados Unidos, volta à casa dos seus avós no extremo oriente russo para mergulhar profundamente nas suas memórias de infância, escolhendo quase exclusivamente apenas os membros da sua família nesta primeira longa-metragem, Babai. Pelos olhos dos dois irmãos mais novos, o realizador vagueia pela fronteira nebulosa entre o mundo infantil e o dos adultos, uma fronteira que não se atravessa sem deixar marcas. A câmara cola-se aos planos fechados claustrofóbicos dos rostos, mãos e costas dos dois miúdos, que se movem livremente num espaço muito limitado, o espaço que encolhe diante dos olhos, para dar lugar a uma disciplina militar. Os rapazes não choram neste mundo desprovido de presença feminina e, se o fizerem, Babai, criatura mítica do folclore, irá levá-los. Babai também é o nome do avô dos rapazes, e esta é uma linha fácil de ler: os meninos serão levados, um dia, do mundo de surpresas e maravilhas, para cumprirem o seu dever como homens. (Anastasia Lukovnikova)
Segundo a fé islâmica, barzack designa um estado de limbo, entre o inferno e o paraíso, depois da vida na Terra. Na cidade espanhola de Melilha, situada no norte da África, vários jovens estão neste limbo, ansiando por uma passagem para a Europa. Eles vivem em cavernas e fendas nas montanhas próximas ao porto. Nesse espaço ancestral atemporal, acendem fogos, cantam e buscam na escuridão a luz de outra vida.
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As constelações das luzes na distante costa da Espanha são tão inacessíveis quanto suas parecidas no céu acima para o grupo de garotos presos na costa norte da África, no primeiro longa de Alejandro Salgado. Barzakh, na cultura islâmica, é um estado entre a vida e a morte e, para os meninos que tentam fazer a travessia para a Europa, encontra sua encarnação terrena na interminável espera nos penhascos, entre os países, os continentes, a força nua. da natureza e do chamado “mundo civilizado”, infância e idade adulta. Os meninos são meras silhuetas contra as luzes escassas da noite sem fim, suas sombras deslizam nas paredes antigas das cavernas, eles não têm nomes nem rostos, mas têm vozes para assinar as músicas sobre a terra que deixaram para trás e seus sonhos da vida que ainda está para começar. (Mafalda Melo)
Num só plano de cinema podem caber os turbulentos destinos de uma democracia. Na rua, dois realizadores entrevistam a jornalista Marília Melhado. Com as eleições, o clima político no Brasil é tenso e apoiantes de Jair Bolsonaro atentam à liberdade de opinião.
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A jornalista Marilia Melhado aceita dar uma entrevista, à boca das urnas brasileiras, no dia da eleição que decide entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Esta simples descrição não contém a impotência tangível que o filme transmite, especialmente palpável num momento de polarização política, virtualmente global, em que a discussão pública se torna desordeira. E se devemos tentar escutar o próximo, comecemos por escutar Marilia. (Ana Cabral Martins)
Depois de terem estado na competição nacional com Antão, o invisível (2017), eis que a dupla luso-suíça regressa com este misto de “documentário zoológico” e retrato ficcional, passado num santuário de aves em Genebra. Com influência de Bresson, o enquadramento rectangular, a voz off do jovem Antonin pairando sob aquele “local sagrado”, mas também o argumento ecológico e uma observação minuciosa, tudo faz parte desta ilha mágica que nos cativa o olhar.
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A jovem e intrigante dupla de realizadores formada por Maya Kosa e Sergio Da Costa entrega, com L’Île aux oiseaux, uma segunda longa-metragem de uma poesia quase irreal, embora intimamente ligada à realidade, indo e voltando entre ficção e verdade, onde uma brota da outra como por magia – que sempre esteve no centro do trabalho da dupla suíça (de origem polaca e portuguesa, respectivamente). Assim como as aves de rapina feridas, Paul, Antonin e os outros funcionários do centro de Genthod precisam de aprender a caçar para sobreviver numa sociedade que “não permite erros”. “Que cheiro é este?” Pergunta o jovem, recém-chegado ao centro e herói do filme, ao entrar pela primeira vez na sala das gaiolas de ratos; “É merda, vais habituar-te”, responde Paul, que trabalha ali há muito tempo. Uma frase de abertura simples e crua que resume o filme bastante bem: grandioso na sua terrível e contraditória simplicidade. A escassez de diálogos torna o conteúdo ainda mais poderoso. As palavras são cuidadosamente escolhidas, entre admiração e precisão, de uma maneira que relembra a os diálogos de Rohmer, com a simplicidade e o tom cómico que se assemelham a Kaurismäki. Como se os muitos planos-sequência que pontuam o filme falassem com imagens quando as palavras permanecem em silêncio. (Mickael Gaspar)
Como fazer face a um ano complicado? Filmá-lo. Mario Valero assina este filme de viagem, entre cidades e entre rostos, uma vida condensada em MiniDV, um diário de estações, um atalho.
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Um filme viagem, diarístico, onde Mario Valero filma a amizade com a mesma força que filma a natureza. Um gesto de re-aprender a filmar e montar. O mundo é-nos apresentado como objeto filmável onde todas as ideias são possíveis e servem para simultaneamente lembrar e esquecer os dias, as caras e as estações do ano, que se vão metamorfoseando e ficando cada vez mais confusas. (Duarte Coimbra)
O que significa (ainda) acreditar no poder revolucionário do cinema? Quatro amigos juntam-se numa casa de campo para refazer partes de obras icónicas desse poder, como La Chinoise (1967) de Godard ou Nicht löschbares Feuer (1969) de Harun Farocki. Depois de Leones, sua obra de estreia (IndieLisboa 2013), o estilo elíptico de Jazmín López está de volta. Nunca sabemos de onde vem o som, nem para onde pode partir a câmara. Rui Poças é o diretor de fotografia.
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Considerada uma das vozes mais promissoras na Argentina, Jazmín López (realizadora do incrível Leones em competição no IndieLisboa 2013) volta agora com este filme em que quatro amigos se juntam numa casa de campo para fazerem o reenactement de três obras icónicas revolucionárias dos finais dos anos 60: os filmes de Godard La chinoise e de Farocki Inextinguishable Fire e a performance que resultou numa série de fotografias Untitled (Facial Hair Transplants) de Ana Mendieta. O que poderia ser uma obra racional, é aqui um filme inventivo e cheio de vida (as conversas atropelam-se e deixam-se deslizar entre a interpretação e a reinterpretação), invocando o poder inspirador da música que sublinha o que não pode ficar esquecido, convocando longos travellings através das divisões da casa e no exterior, brilhante direcção de fotografia assinada por Rui Poças) para lhe dar monumentalidade. (Miguel Valverde)
A ciência e o oculto, os ovnis e os crisopídeos. A vida prega partidas e nem um brilhante cientista está a salvo, naquela fatídica tarde de piquenique junto ao lago.
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Uma animação melancólica e divertida sobre um cientista com problemas de fé. As indecisões do personagem transformam-se numa hipótese para refletir sobre algumas das questões mais urgentes da nossa sociedade, desde as alterações climáticas à ideologia de género. O jogo torna-se interessante quando as respostas às questões que o filme coloca ficam muitas vezes a cargo do espectador. (Duarte Coimbra)
A primeira longa de Mamadou Dia chega-nos duplamente premiada no Festival de Locarno (Leopardo de Ouro Cineastas do Presente e Melhor Primeiro Filme). Rodado na sua cidade natal, Matal no Senegal, esta é a história de dois irmãos, Tierno e Ousmane, que se zangam por causa do casamento dos seus dois filhos. O primeiro quer casar o seu rapaz com a filha do segundo, a bela Nafi. O que está em causa é o alastrar do fundamentalismo numa pequena comunidade.
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Baamum Nafi é um conto familiar centrado em Tierno, imã de uma aldeia senegalesa, e a sua filha Nafi. Nenhum dos dois está interessado em seguir cegamente os desejos do irmão de Tierno, líder islâmico que força a sua autoridade na aldeia, nem de sucumbir a extremismos religiosos. Prosseguir com um casamento-contrato entre os filhos dos dois irmãos e abraçar uma viragem no sentido de uma liderança hiper conservadora seria uma tragédia para todos os habitantes. Uma primeira obra pulsante pelas interpretações de Alassane Sy e Aïcha Talla, Baamum Nafi é uma lição de cinema e só podemos aguardar ansiosos o próximo filme de Mamadou Dia. Embora as obras de Dia e Ousmane Sembène (cuja obra integral mostramos este ano em retrospectiva) estejam separadas por décadas, o que os move, no coração do Senegal, continua lá: um cinema do Bem e do Mal, de estrondosa beleza. (Mafalda Melo)
When children play, adults play as well: some are DJing with microwaves, the others turn themselves to bacon snacks. This is the Nordic humour of two directors whose work we previously met in 2016, with the short Small Talk.
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It’s Saturday afternoon in a Norwegian play-land. Children play uninhibited while an adult couple watches and eavesdrops on a conversation between three women about the existence of bacon on chips. That same couple decides to meddle in the conversation where they are not wanted instead of resolving their own issues. In great Noewegian humor awkwardness ensues while we sink lower in our chairs until it’s over. (Rui Mendes)
Na cidade, o caos tudo devora e transforma com sua inquietação. Uma noite, Reine, uma jovem solitária, sente-se atraída por algo místico, uma espécie de guia, como uma pretensa unidade.
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Genius loci é um termo do latim que se refere ao espírito de um lugar. Reine é a personagem principal do filme que se pode dizer que vive uma experiência espiritual da cidade durante uma noite. Um filme sobre a procura. Reine procura algo, mas não sabe bem o quê. Uma noite à deriva, com os sentidos aumentados. Uma animação tremendamente delicada, com diferentes técnicas e texturas e com o universo visual reconhecível do ilustrador Brecht Evens (A Fantástica Viagem de Marona). Adrien Merigeau passa, com esta animação a outro, nível. (Carlos Ramos)
O cinema do Bas Devos é particularmente atento a movimentos imperceptíveis e identidades ofuscadas. Este seu último filme, rodado em 15 noites, segue o trajecto nocturno de Khadija, mulher de 58 anos que, ao perder o último metro, tem de ir para casa a pé. Retrato minimalista, mas também uma aventura singela e humana que vê na noite urbana dos sem abrigo, dos seguranças, dos imigrantes, o espaço da descoberta, da vulnerabilidade e dos laços entre as pessoas.
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Uma luz de final de tarde inunda uma sala de uma casa velha. O crepúsculo é indiciador de mudança, de algo que pode não estar bem. E é nesta atmosfera instável que o belga Bas Devos apresenta a sua personagem. Uma mulher árabe que não consegue voltar para casa ao final de um dia de trabalho. Imediatamente os nossos sentidos ficam alerta porque algo vai correr mal. São esses pensamentos que nos assaltam que fazem parte da narrativa mas não estão escritos ou filmados. Juntos com o filme, permitem estabelecer novos códigos e é aqui que a originalidade toma conta deste filme. O espectador atento e activo está no filme, do lado da personagem principal, com as suas dores e doenças, enfim, com a sua vida. É por isso que é tão bonito voltar àquela primeira sala e voltar a sentir uma luz emergente, clara que quase cega. É o nosso coração a bater. Devos (de quem o IndieLisboa já tinha exibido a curta metragem We Know) é, claramente, um cineasta a seguir. (Miguel Valverde)
Quem vive nas grandes cidades vai perceber o drama. Uma jovem tem uma tarefa sisífica pela frente: carregar um colchão escada acima para o seu apartamento. Quase sem palavras e filmada em 16mm, esta comédia física é também uma homenagem à cidade de Nova Iorque.
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Há uma mão cheia de filmes cuja representação de um experiência verdadeiramente nova iorquina inclui um exemplo de urinação em público: Kids, Frances Ha e, também, Moving. Mas a quintessência que este filme captura é bem mais abrangente e uma ilustração de como qualquer mudança – material ou emocional – é tão mais difícil quando solitária. Mesmo se o gesto for tão singelo como puxar um colchão escadas acima, se o consegues fazer em Nova Iorque, “you can make it anywhere”. (Ana Cabral Martins)
Holem Wood, situada no norte de Inglaterra, é uma zona residencial construída nos anos 50 para as classes trabalhadores. Com a passagem do tempo tornou-se uma zona isolada. Nela vive Tyler um rapaz de 16 anos que nunca foi à escola.
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Num complexo habitacional de baixo custo, no norte de Inglaterra, as crianças vivem grande parte do seu tempo na rua, crescendo juntas e aprendendo a enfrentar as adversidades de uma vida de exclusão. Neste retrato da infância não existem adultos e as regras são definidas por outras hierarquias. Não há contenção na alegria nem na revolta. Uma infância no limite que não antecipa um futuro melhor. (Margarida Moz)