Ao contrário do samba ou da bossa nova, a música eletrónica brasileira não tem sido objeto de abordagem pelo cinema. Este documentário procura preencher essa lacuna, traçando um percurso histórico que começa nas experiências pioneiras de Jocy de Oliveira e Jorge Antunes, nos anos 60, e vem até aos dias de hoje, com nomes como Alexx kidd, Savio Lopes, passando pelo trabalho da editora Cri du Chat e de veteranos como Anvil FX, Loop B. ou Apollo Nove.
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Na década de 1960, Jocy de Oliveira e Jorge Antunes já faziam as suas primeiras experiências no universo da música electrónica no Brasil. Os dois pioneiros não podiam imaginar a influência que suas composições teriam nas gerações futuras. Com o passar das décadas, a música electrónica popularizou-se e passou a ser um estilo de vida e um estado de espírito. Mas enquanto os músicos dominam as tecnologias em constante evolução, eles também reflectem sobre a relação entre o homem e a máquina. (Mickael Gaspar)
Quão perfeita pode ser uma viagem num carro mágico pelas maravilhas do Estado da Florida? Ironia ácida, guiada pelos confins da memória de juventude de Chernyak, na qual a candura Disney faz conchinha com séries vintage como Benji ou Flipper.
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Um possível tesouro enterrado num sótão fictício, entre outras cassetes de vídeo, que não celebra senão o poder do cinema nos transportar, com um sorriso sarcástico nos lábios. Parte diversão Disney, parte homenagem musical ao estado americano, a realidade neurótica da vida adulta dá as mãos (e oferece um sumo de laranja) ao mais cego otimismo. Para umas férias, ou uma licença sabática, a vida simples vive-se na Flórida. (Ana Cabral Martins)
A vida é feita de ciclos e o cinema de Adriano Mendes mostra-nos isso. Depois da sua primeira longa, O Primeiro Verão (melhor obra secção Novíssimos, IndieLisboa 2014) – filme quente, da juventude a despontar no amor e no Verão – eis-nos chegado ao momento em que é preciso arranjar um trabalho. 28½ segue uma jovem nessa procura, numa Lisboa gentrificada, no qual a carência, a atração, a partilha, o final do amor, surgem ao mesmo tempo e sem avisar.
A partir de uma fotografia tirada com a sua mãe no final dos anos 80, Lei Lei (presente no IndieLisboa em 2016 com Missing One Player e 2017 com Books on Books) reflete sobre o estatuto da imagem como arquivo de nostalgia, fusão de memórias individuais e coletivas.
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Análise de memórias que começam num carro-cenário e crescem depois para carros reais, objectos de transporte perfeito para revisitar o tempo como verdadeira experiência de imagem fixa e em movimento. Outros objectos e espaços juntam-se, suportes duma impressão do tempo que se move em constante evocação. Filme de natureza analítica e sensível que vai do pessoal ao colectivo abrindo-nos a um belo diário pleno de vida. (Carlota Gonçalves)
“Quanto pesa uma nuvem?”, pergunta Lucrécio. O filósofo romano vê o seu desejo afectado pelo desespero, habitando o abismo entre a ciência e a magia. Baseado num conto de Marcel Schwob, Mouramateus cruza, com ironia, o clássico e o contemporâneo.
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O simbolista francês Marcel Schwob escreveu, entre uma série de outros pequenos contos semiautobiográficos, sobre o poeta e filósofo romano Lucretius. Nesta adaptação anacrónica desse conto, a natureza humana é o alvo óbvio da filosofia em tela, mas é a maneira como é criada a teia desta narrativa cinemática que surpreende pela forma como nos aproxima do que nos mostra: não apesar de, mas devido ao seu artifício. (Ana Cabral Martins)
A dupla Francisco Queimadela e Mariana Caló (A Trama e o Círculo, 2015 e Sombra Luminosa, 2018) realiza esta viagem sensorial, entre o documental e a imaginação. Um encontro com a natureza, o contacto e o afecto, o movimento de um círculo familiar.
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Corpos, natureza, flores, bichos, a luz e a noite, acordam uma narrativa de desejo e sonho. Um filme que paira sobre as coisas, aproxima-se delas, toca-lhes… um filme de gestos, de mãos, melancólico e agitado. Personagens adormecidas e despertas movem-se numa depurada paisagem de límpidos e obscuros desejos; Valéry e Bataille, amor e erotismo e a bravura do pensamento. E mais fantasmas e espelhos ancestrais de água que recolhem imagens. Um filme que fulgura, atmosférico, musical, encantatório. (Carlota Gonçalves)
No Oeste de Portugal surge subitamente uma mulher misteriosa. Todos a tinham visto, mas ninguém sabia quem era. Mãe, fada, anjo, dona de uma vinha? Com recurso a depoimentos e imagens de arquivo, Lúcia Pires (Fauna, 2018) questiona a efabulação e a existência sem prova.
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“Era noite, a terra tremeu, uma bola enorme que girava como um disco e lá dentro uma figura de uma mulher”. Um dia há muitos anos uma mulher surgiu num lagar de um produtor de vinho e abençoou esse mesmo produtor com a sua melhor vindima. Quem será esta mulher sem nome cuja descrição ficou perdida no tempo? “A Rainha” é um filme sobre a veracidade dos contadores de histórias, uma reflexão e exercício sobre a sua própria forma enquanto filme. (Rui Mendes)
Nos anos 80, José Pinhal gravou um par de cassetes num estúdio de Matosinhos e depois foi esquecido. Foi apenas nos anos 2000 que a sua música começou a ser recuperada, em festas e na internet, transformando-o num dos mitos da música popular portuguesa.
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José Pinhal foi um estranho na multidão. Em seu redor, somente paira a grossa névoa do mistério. Sobra-nos, portanto, a sua palavra delicada e do que, com ela, nos canta José: dos cabelos da mulher sonhada, longos até à cintura, que se querem desfraldados ao vento, ou dos lábios saturados de vermelho daqueloutra que se deseja mas se não pode, derradeira panaceia para a polidipsia da alma. Um romântico de gostos simples na vida, eis enfim tudo sobre José Pinhal. A delicada lírica do cantautor, que tanto nos diz sobre a vida e os amores, é uma fortuna que só reconhecemos depois de partir dentre nós esta ave canora de Santa Cruz do Bispo. O reportório de José Pinhal é uma ode interminável ao Amor, ao bailarico de verão, ao perdão que nem sempre se nos é concedido. Se o amor é eterno na sua música, também José o é agora em A Vida Dura Muito Pouco; se Pinhal cantava o perdão, cantamos-lhe nós agora o nosso reconhecimento tardio. (Filipa Henriques)
Pela janela de um comboio, Petronin impressionou uma tira de película numa câmara sem obturador, expondo-a um fluxo contínuo e sequencial de luz. O resultado é a dissolução do espaço entre frames e os elementos de uma paisagem a perder a sua solidez.
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Cinco minutos criados a partir da manipulação de uma fotografia de 35mm, tirada durante uma viagem de comboio entre Dordrecht e Roterdão, sem a ajuda do shutter. A fotografia ganha assim o movimento do cinema, absorvendo o fluxo de luz. Torna-se corrente e contínua. Formas perdem a definição; existem entre a figuração e a abstração. Cinco minutos que colapsam as fronteiras entre o cinema, a fotografia e a pintura. (Ana Cabral Martins)
Num estilo delicado, Moeschler ensaia o regresso de um jovem do campo à sua cidade de origem. O êxtase do reencontro, a possibilidade de recomeço, a amizade e o amor, as ruas nocturnas vazias.
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Num subúrbio francês, onde se pinta um retrato coral da juventude agrilhoada pela economia (há referências aos coletes amarelos, aos entregadores precários, às redes sociais), um rapaz decidiu ser pastor, longe dos mercados e das tecnologias da comunicação. Descreve-se o seu retorno, a um lugar, a uma comunidade a e a uma relação que fora deixada suspensa. A figura do reencontro constitui, portanto, o núcleo de “Abissu”: uma fábula sobre o voltar a olhar, a tocar, a sentir e a beijar um corpo amado. Um “West Side Story” ainda mais cheio de tesão. (Ricardo Vieira Lisboa)
Film foi a única obra de Samuel Beckett para o cinema. Nela queria ter imagens de exterior de uma rua, rua essa que descrevesse uma “rua absoluta”. Jan Ijäs dá-nos agora a ver a procura dessa “rua absoluta”, no Verão de 1964, em Nova Iorque.
Um nobre espera ansiosamente a sua noiva, que vai finalmente conhecer. Vão tomar chá juntos. Quando ela chega há algo de errado com o seu vestido. Mas por vezes o importante é não dar parte de fraco.
Nesta animação de final de curso de Erik Svetoft, os animais estão presos num zoo e servem de entretenimento e humilhação. Cá fora as cores fortes anunciam a destruição da natureza. Um filme de dança e libertação.
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Não fosse este filme ter sido feito antes do confinamento, poder-se-ia especular que era o resultado de muito dias fechado em casa e sob influência de substâncias estranhas. Algen é um filme frenético e divertido, tão bizarro quanto inventivo. Dois animais fogem de uma espécie de jardim zoológico, depois de humilhados pelos visitantes, em busca da liberdade. Dois animais que gostam de dançar. (Carlos Ramos)
Amélia chega a um porto industrial. As fábricas, os pequenos barcos, a água paciente na noite. Num impulso resolve meter-se num dos barcos. Mas neste seu mundo, há também o mundo dos outros. Por exemplo, um pescador mais velho que ali vai para trabalhar.
Foi quando estava a estudar cinema na Universidade da Califórnia, que Luart e alguns colegas também estudantes fizeram este documentário. No centro do filme, a filósofa Angela Davis, nome importante ligado ao partido comunista americano, aos Black Panthers e ativista pelos direitos das mulheres e contra a discriminação racial. Seguindo a sua dimensão privada e carreira política, este retrato tornou-se num exemplo de verdadeiro manifesto revolucionário.
Por vezes, a cinefilia é encontrar num filme que antecede o sono alguém que não contávamos ver ali. Neste caso, foi a actriz Anna Sten, vedeta do cinema mudo russo, que surge aos olhos de Rappaport, anos depois, num filme dos anos 50 de Edward Dmytryk.
Parte-se de uma memória visual colectiva, constituída por mais de 3000 desenhos, feitos pelo povo indígena brasileiro, Waimiri-Atroari. Neles vemos um processo de aprendizagem, mas também a violência a que foram submetidos durante a ditadura militar.
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Os desenhos feitos nos anos 70 pelos Waimiri-Atroari durante o seu processo de alfabetização servem de base a Apiyemiyekî?. Neles vê-se e lê-se os testemunhos-reacções deste povo indígena da Amazónia à violência e atrocidades contra si perpetradas pelos brancos durante a ditadura militar brasileira. Num filme ancorado no passado, a reverberar num presente com que partilha demasiadas semelhanças, Vaz reproduz com inteligência e intenção um gesto de audição original essencial ao entendimento de uma comunidade. (Ana David)
Ver com os as mãos. Uma fotografia foi tirada por alguém no dia da independência da Tunísia, em 1956. Neste filme premiado em Roterdão, Bahri mostra-nos essa imagem, opaca à luz, mas revelada, pedaço a pedaço, pela coreografia e movimento de umas mãos.
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Um filme que se desdobra pelo toque mágico e exploratório da imagem como peça, onde as mãos se tornam sombras vivas, reveladoras de mais imagem que também é memória, fazendo-nos descobrir figuras humanas e andar para trás no tempo. Imagem permeável, transparente, de alta sensibilidade ao gesto; um gesto que vai criar a intimidade de um momento breve, delicado e singularmente háptico: “Tocar é ver”, diz-nos Ismaïl Bahri. (Carlota Gonçalves)
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