Todos os Mortos

No ano passado o IndieLisboa, no programa Brasil em Transe, mostrou filmes de importantes autores do emergente e combativo novo cinema brasileiro, entre os quais Seus Ossos e Seus Olhos de Caetano Gotardo. Em 2018 tínhamos visto já As Boas Maneiras de Juliana Rojas e Marco Dutra. Agora, a dupla Gotardo/Dutra traz-nos uma história de duas famílias e de assombrações trazidas pelo espectro da escravatura, numa São Paulo da viragem para o século XX.

Maria, uma freira, avança pelas escadas escuras com uma tocha na mão. Assustada, como se algo a observasse, espreitando no escuro. A cena parece um puro arquétipo do fantástico, mas nada, absolutamente nada será como esperamos em Todos os Mortos: nem o filme sobrenatural que imaginamos, nem o filme de época que parece evidente. A longa desenrola-se num momento crítico, no crepúsculo do século XIX, durante uma época de mudanças sociais no Brasil. Contudo, a mudança não se efectua com tanta clareza, nem no país, nem na casa rica dos Soares. A escravatura foi abolida no Brasil há dez anos, mas o que resta da mesma nas estruturas sociais, nas relações de classe? Para os Soares, a Europa é “a origem de tudo”, a África é um grande magma indistinto, o tom está nesta forma de paternalismo que os colonos imaginam benevolente e magnânimo. Todos os mortos observam a brancura e sua hegemonia de uma maneira sem precedentes num mundo que parece estar a avançar… mas será que está realmente a mover-se? Para quem? Estreada há alguns anos, a primeira longa metragem de Caetano Gotardo chamava-se O Que se Move. Um título que poderia ter funcionado aqui, num filme em que sentimos um mundo em turbulência e observamos outro que parece congelado para sempre. (Mickael Gaspar)

Seus Ossos e Seus Olhos

Em 2013, com “O Que se Move”, Caetano Gotardo emocionou uma plateia inteira e quase venceu o prémio do público e o ano passado, com a curta “Merencória”, os casais separavam-se e reuniam-se no entrelaçar de uma balada triste. Agora, com “Seus Ossos e Seus Olhos”, o realizador (e também argumentista, montador e protagonista) lança-nos mais uma vez no baile dos sentimentos, por entre lençóis suados, conversas de sofá, confissões e passeios pela rua. Na tradição de Rohmer ou Sang-soo, mas numa perspectiva queer, este é um filme que nos toca, com a mão aberta, o peito despido.

 

Merencória

Caetano Gotardo (realizador da longa O Que se Move, IndieLisboa 2013) repete a estrutura tripartida em Merencória: os casais separam-se e reúnem-se no entrelaçar de uma balada triste.

O Que Se Move

Três histórias sem aparente ligação entre si, apenas com um ponto comum: uma profunda observação dramática associada à maternidade. Tentar encaixar O que se move numa gaveta cinematográfica é deixar escapar um filme que não tem medo de não se encaixar num território formal. Caetano Gotardo foi temerário e saltou todas as fronteiras para explorar os territórios que o interessavam. Nesta quase tragédia grega em III actos, a monstruosidade de cada uma das acções é totalmente subjugada ao amor maternal e moldada pelo romantismo. A crueldade está, sim, nos gestos quotidianos, no regresso à banalidade depois de um acontecimento que destrói todas as fundações. (M.M.)