Foco Silvestre

Já no final de Los Conductos (primeira longa-metragem de Camilo Restrepo, IndieLisboa 2020) ouve-se: “O mundo seria mais simples se as coisas não tivessem cores, nem sons, nem que uma coisa pudesse significar outra ou ser uma memória doutra vida.” O cinema de Restrepo é o oposto de tudo isso. É o fulgor dos pigmentos e das sonoridades, é a polissemia das palavras e das imagens, num exercício de evocação dos espectros que assombram o passado colonial e o presente conturbado da Colômbia. O seu cinema é um magma sensorial feito de elementos artesanais.

Com os seus primeiros filmes, Restrepo tanto ruma à floresta tropical, da região do Chocó, em busca dos fantasmas do missionarismo cristão e do consumismo televisivo que assombram os arquivos, em Tropic Pocket (2011); como se deixa deslumbrar pela vivacidade dos artistas de rua que ganham a vida nas avenidas de Medellín (tomadas pela toponímia da guerra e da violência), em Como cresce la sombra cuando el sol se inclina (2014); ou percorre uma história alternativa das últimas décadas do seu país através das marcas que ficaram impressas nos jornais, nas estradas e nos corpos dos colombianos, em La impresion de una guerra (IndieLisboa 2016, Melhor Curta Documental).

Depois, com o duo composto por Cilaos (IndieLisboa 2017) e La Bouche (2017), Restrepo começa a filmar em França e mergulha nos rituais de transcendência das Ilhas Reunião – maloya – e na percussão revigorante do guineense Mohamed Bangoura. Dois “musicais” sobre a perda e o poder transfigurador da música e a sua capacidade de trazer os mortos de volta à vida.

Para Los Conductos, Camilo regressa a Medellín e lança-nos numa viagem noturna pelas ruas esconsas do crime, naquele que é talvez o seu filme mais político. Inspirado (em parte) na vida do ator principal, Pinky, e num texto do escritor Gonzalo Arango, encontramos um homem que vagueia por uma cidade tomada pela perfídia. À semelhança das suas experimentações nas curtas, Restrepo dobra o filme sobre si mesmo, num labirinto de espelhos onde a realidade e a sua sombra se confundem: a coisa (o revólver), a sua imagem (filmada em 16mm), a sua iconografia (num desenho de Pinky) e o seu símbolo (a mensagem inscrita na coronha da arma, “Esta é a minha vida”) misturam-se num “teatro miniatura de representações” que tanto pode ser uma visão de deus, como do diabo.

Mas o que define o olhar de Camilo Restrepo é a sua atenção à dimensão processual dos gestos. As mãos que filma são experientes e isso ressoa no modo como se corta um pneu, se tatua ou se estampa um tecido. Essa manualidade reflete, também, a sua dedicação ao cinema em formato analógico. Parte do coletivo L’Abominable, que gere um laboratório de película partilhado por vários artistas de Paris, Restrepo acredita num cinema de emulsões (e emoções). Daí que fosse inescapável, numa retrospectiva sua, dar-lhe uma carta branca, composta por filmes desse grupo. Um elogio ao luxo das texturas e à imprevisibilidade dos processos e uma homenagem àqueles que sempre lhe deram “apoio técnico e moral”.

Ricardo Vieira Lisboa

CAMILO RESTREPO E O COLECTIVO L’ABOMINABLE