Fiebre Austral

Qual a distância que vai da dor ao prazer? Quais os limites da sensitividade do corpo? Inspirado nas imagens violentas, eróticas e sedutoras da pintora chilena Carmen Silva, tia do realizador, esta é a história de uma ferida que produz prazer.

Um jovem sofre um acidente. O amigo ajuda. A mãe do amigo acolhe-o. A ferida que nasce é quente e uma perfeita atracção para o abismo. É neste contexto que o chileno Woodroffe (de nome inglês que contrasta com a sua latinidade), actua tirando partido de uma situação que nunca é comum. O ambiente familiar tem qualquer coisa de “fora do sítio”, e a casa aparentemente arrumada, está prestes a explodir numa energia contida. Woodroffe arrisca-se a ser o próximo “caso” chileno depois de Dominga Sotomayor. (Miguel Valverde)

 

Ao Largo

Utilizando uma técnica de animação de volumes, Mathilde Pepinster imagina a história de um homem que, de visita ao supermercado, pensa que é um esquimó e que vive rodeado de gelo.

 

Le Regard de Charles

Desde que Charles Aznavour recebeu uma câmara, em 1948, das mãos de Edith Piaf, que o acto de filmar se tornou parte do seu quotidiano. O cantor mantinha um vídeo diário, no qual registou momentos importantes da sua vida, viagens, concertos, amantes e amigos. Antes de morrer expressou o desejo de com aquele material fazer um filme. Marc di Domenico, ele próprio tendo filmado Aznavour durante 3 anos, concretiza esse desejo, acedendo aqui a esse espólio pessoal.

O normal é que as câmaras estejam viradas para eles, os cantores, os actores, os homens e as mulheres que sobem aos palcos e que preenchem as telas. Um dos maiores nomes da canção francesa, filho de refugiados arménios que atravessou o século XX e que entrou no seguinte com a certeza que nada a não ser a morte o poderia parar (e só mesmo ela para o obrigar à reforma antecipada, tinha ele 94 anos, estávamos em 2018), Charles Aznavour foi antes de mais cantor, mas também preencheu as telas, como não nos deixa esquecer o “Disparem Sobre o Pianista” em que Truffaut o fez protagonista no início da ebulição nouvelle vague. Aznavour By Charles mostra-nos Charles Aznavour, a estrela, a fazer algo para além do normal. Em 1948, Edith Piaf ofereceu-lhe uma câmara. Nos 34 anos seguintes, Aznavour registou paisagens e rostos, gente anónima, as mulheres da sua vida, as estrelas como ele. Marc di Domenico mergulhou nesse imenso arquivo e deu-lhe uma forma. Romain Duris fez-se Aznavour e deu voz ao seu pensamento. O resultado é um filme revelador. O observador torna-se a coisa observada, e vice-versa. “Aznavour by Charles”, Charles é Aznavour. (Mário Lopes)

 

Babai

Se não adormeceres vem aí o papão e leva-te! Na mitologia eslava quem rapta as criancinhas é Babai. O filme de Aisagaliev contém esse medo onírico do crescimento, mas é sobretudo uma vertiginosa viagem sensorial pelas primeiras impressões visuais e sonoras da infância. Dois irmãos e um pai bastante severo. O mundo rasga-se diante dos olhos, são memórias sem nitidez, pedaços de alegria, de humilhação. É a excitação traumática e cromática da infância.

Artem Aisagaliev, nascido na Rússia e a viver nos Estados Unidos, volta à casa dos seus avós no extremo oriente russo para mergulhar profundamente nas suas memórias de infância, escolhendo quase exclusivamente apenas os membros da sua família nesta primeira longa-metragem, Babai. Pelos olhos dos dois irmãos mais novos, o realizador vagueia pela fronteira nebulosa entre o mundo infantil e o dos adultos, uma fronteira que não se atravessa sem deixar marcas. A câmara cola-se aos planos fechados claustrofóbicos dos rostos, mãos e costas dos dois miúdos, que se movem livremente num espaço muito limitado, o espaço que encolhe diante dos olhos, para dar lugar a uma disciplina militar. Os rapazes não choram neste mundo desprovido de presença feminina e, se o fizerem, Babai, criatura mítica do folclore, irá levá-los. Babai também é o nome do avô dos rapazes, e esta é uma linha fácil de ler: os meninos serão levados, um dia, do mundo de surpresas e maravilhas, para cumprirem o seu dever como homens. (Anastasia Lukovnikova)

 

Coelho Mau

No universo cinematográfico de Carlos Conceição o maravilhoso não é mundo à parte da realidade. Complementam-se, sacrificam-se um pelo outro. Um irmão ajuda uma irmã a morrer feliz. O conto de fadas é também um conto de fodas e máscaras de oxigénio.

Karv

Pobre Leo. Ele sabe que isso de as mulheres preferirem os carecas não é bem assim. Mas a salvação chega sob a forma de um misterioso líquido-maravilha que faz crescer o cabelo.

 

Barzaj

Segundo a fé islâmica, barzack designa um estado de limbo, entre o inferno e o paraíso, depois da vida na Terra. Na cidade espanhola de Melilha, situada no norte da África, vários jovens estão neste limbo, ansiando por uma passagem para a Europa. Eles vivem em cavernas e fendas nas montanhas próximas ao porto. Nesse espaço ancestral atemporal, acendem fogos, cantam e buscam na escuridão a luz de outra vida.

As constelações das luzes na distante costa da Espanha são tão inacessíveis quanto suas parecidas no céu acima para o grupo de garotos presos na costa norte da África, no primeiro longa de Alejandro Salgado. Barzakh, na cultura islâmica, é um estado entre a vida e a morte e, para os meninos que tentam fazer a travessia para a Europa, encontra sua encarnação terrena na interminável espera nos penhascos, entre os países, os continentes, a força nua. da natureza e do chamado “mundo civilizado”, infância e idade adulta. Os meninos são meras silhuetas contra as luzes escassas da noite sem fim, suas sombras deslizam nas paredes antigas das cavernas, eles não têm nomes nem rostos, mas têm vozes para assinar as músicas sobre a terra que deixaram para trás e seus sonhos da vida que ainda está para começar. (Mafalda Melo)

Batalha

Num só plano de cinema podem caber os turbulentos destinos de uma democracia. Na rua, dois realizadores entrevistam a jornalista Marília Melhado. Com as eleições, o clima político no Brasil é tenso e apoiantes de Jair Bolsonaro atentam à liberdade de opinião.

A jornalista Marilia Melhado aceita dar uma entrevista, à boca das urnas brasileiras, no dia da eleição que decide entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Esta simples descrição não contém a impotência tangível que o filme transmite, especialmente palpável num momento de polarização política, virtualmente global, em que a discussão pública se torna desordeira. E se devemos tentar escutar o próximo, comecemos por escutar Marilia. (Ana Cabral Martins)

 

Para Cá do Marão

Foi na rodagem na região de Trás-os-Montes, do filme Terra Fria (1992) de António Campos, que o produtor, agora realizador, João Mazeda ouviu contar esta história verídica. Um roubo de água, um homicídio, uma questão de honra, uma tragédia na aldeia de Gralhas, em Montalegre.

 

L’île aux oiseaux

Depois de terem estado na competição nacional com Antão, o invisível (2017), eis que a dupla luso-suíça regressa com este misto de “documentário zoológico” e retrato ficcional, passado num santuário de aves em Genebra. Com influência de Bresson, o enquadramento rectangular, a voz off do jovem Antonin pairando sob aquele “local sagrado”, mas também o argumento ecológico e uma observação minuciosa, tudo faz parte desta ilha mágica que nos cativa o olhar.

A jovem e intrigante dupla de realizadores formada por Maya Kosa e Sergio Da Costa entrega, com L’Île aux oiseaux, uma segunda longa-metragem de uma poesia quase irreal, embora intimamente ligada à realidade, indo e voltando entre ficção e verdade, onde uma brota da outra como por magia – que sempre esteve no centro do trabalho da dupla suíça (de origem polaca e portuguesa, respectivamente). Assim como as aves de rapina feridas, Paul, Antonin e os outros funcionários do centro de Genthod precisam de aprender a caçar para sobreviver numa sociedade que “não permite erros”. “Que cheiro é este?” Pergunta o jovem, recém-chegado ao centro e herói do filme, ao entrar pela primeira vez na sala das gaiolas de ratos; “É merda, vais habituar-te”, responde Paul, que trabalha ali há muito tempo. Uma frase de abertura simples e crua que resume o filme bastante bem: grandioso na sua terrível e contraditória simplicidade. A escassez de diálogos torna o conteúdo ainda mais poderoso. As palavras são cuidadosamente escolhidas, entre admiração e precisão, de uma maneira que relembra a os diálogos de Rohmer, com a simplicidade e o tom cómico que se assemelham a Kaurismäki. Como se os muitos planos-sequência que pontuam o filme falassem com imagens quando as palavras permanecem em silêncio. (Mickael Gaspar)

 

La noire de…

A longa metragem inaugural de Sembène é tida como o primeiro filme de um realizador da África subsariana a ter atenção internacional. Baseado num conto homónimo do autor, ela acompanha a vinda, de Dakar para a Riviera francesa, de Diouana, uma jovem senegalesa, contratada como babysitter por um cosmopolita casal francês. Este é um trajeto de silenciosa rebelião, na passagem dos sonhos ilusórios por uma vida melhor a uma realidade de exploração.

 

Eine Prämie für Irene

Numa crítica aos filmes berlinenses que abordavam os dilemas laborais, mas sempre no masculino, Sander inverte a premissa. Irene, mãe solteira, trabalha numa fábrica de máquinas de lavar e tem de lidar com discriminação, assédio e falta de solidariedade.
Este filme não é falado e nem legendado em inglês.

Breve Miragem de Sol

Paulo não consegue pagar a pensão de alimentos à ex-mulher. Para poder voltar a ver o filho, começa a trabalhar como taxista nas noites do Rio de Janeiro. Pelas janelas do carro, pelas histórias dos seus passageiros, começa a viagem e a autópsia a uma cidade, onde o sol já só chega por miragem. Existências noturnas, sombras cansadas, solidão e silêncio que observam. Prémio de representação para Fabrício Boliveira no festival de cinema do Rio de Janeiro. 

Entregue à sua sorte, Paulo, recentemente divorciado, começa a trabalhar como taxista para sobreviver na grande cidade e pagar a pensão do seu filho de 10 anos. Enquanto conduz pelas noites intermináveis do Rio de Janeiro, acompanhamos o condu­tor no interior do seu taxi, por onde transitam passageiros que se conectam mais intensa­mente com a história de Paulo. Nesta crónica obscura e palpitante, a imprevisibilidade da noite ocupa o primeiro plano, onde as imagens oscilantes e claustrofóbicas nos antecipam a angústia.

Na oitava longa-metragem de Eryk Rocha, que passeia entre a ficção e o documental, sen­timos as ruas do rio de Janeiro como uma espaço obscuro e decadente, e onde a esperança apenas renasce dentro do taxi, quando novos passageiros ajudam Paulo a ultrapassar a solidão e o caos urbano que enfrenta todas as noites. Apenas estes personagens poderão trazer novamente amor e felicidade à vida de Paulo. (Inês Lima Torres)

 

La dialectique peut-elle casser des briques? (restored version)

No início dos anos 70, o situacionista e cineasta René Viénet comprou os direitos de um filme de kung fu chinês e, adicionando-lhe legendas e mais tarde dobragem, transformou-o numa hilariante comédia burlesca avant garde. Era a técnica do “détournement”, que reformulava e recontextualizava obras de arte para certos fins. E assim, um filme de artes marciais passou a conter aforismos revolucionários e lutas opondo proletários e burocratas.
Este filme não é falado e nem legendado em inglês.

Cântico das Criaturas

Inspirado no Cântico do Irmão Sol ou Cântico das Criaturas, que São Francisco de Assis escreve em 1224, esta curta de Miguel Gomes reactiva o seu alcance. Na cidade de Assis em 2005 e na lembrança do louvor das pequenas criaturas a um santo desmemoriado. )

Caos e Afinidade

Viagem pela música improvisada em Portugal, em particular em Lisboa, tendo como foco o já extinto Bar Irreal. Com entrevistas e concertos filmados de nomes como Gabriel Ferrandini, Adriana Sá ou Lantana, Chaos and Affinity dá a ver uma realidade cultural pouco retratada, de um conjunto de artistas e locais nacionais onde esta música tem lugar. Pedro Gonçalves assina aqui a sua primeira longa metragem.

Uma das forças do documentário de Pedro Gonçalves é a sua contemporaneidade. A maior parte dos documentários sobre música foca-se sobretudo em bandas, artistas ou movimentos que já não existem ou cujo momento áureo ocorreu no passado. Caos e Afinidade fala-nos sobre o aqui e agora. Um retrato da música improvisada portuguesa, com maior enfâse em Lisboa e com epicentro no, ironicamente extinto, bar Irreal.  Pedro reúne um conjunto de músicos incríveis, resgatando-os da sua invisibilidade através de concertos e entrevistas. Um objecto para memória futura naquele que é o seu primeiro e promissor filme. (Carlos Ramos)

 

Responsabilidad Empresarial

No período da ditadura argentina (1976 -1983), vários foram os cúmplices do sector social que contribuíram para a repressão, sem nunca terem sido responsabilizados. Em novembro de 2015, o Ministro da Justiça e Direitos Humanos elaborou um extenso relatório com 25 casos comprovados dessa responsabilidade por parte de várias empresas. Esse livro nunca foi publicado e Perel procura aqui torná-lo visível, defronte da sede de muitas dessas empresas.
 —
Neste “tipo de peça concebida especificamente para o local”, o realizador argentino Jonathan Perel (17 Monumentos, Toponymy) serve de detective, ao fazer uma viagem solitária de 14.000 quilómetros para revisitar as cenas dos crimes de repressão da ditadura de 1976 -1983 no seu país. Enquanto lê em voz alta relatórios oficiais sobre conspirações, sequestros e assassinatos, vemos as intermináveis vedações, emolduradas pelo pára-brisas do carro do realizador, filmadas às escondidas, durante o dia. Não são prisões que se vêem por trás das vedações, mas chaminés fumegantes das fábricas. As provas que Perel recolhe, seguindo o relatório recentemente publicado pelo estado argentino, serve para responsabilizar as empresas pelos seus crimes do passado, mas a falta de transparência, evidente no seu exaustivo catálogo de imagens, obriga também a fazer perguntas inconvenientes sobre o presente. (Anastasia Lukovnikova)

 

Rizi

O cinema belo, frágil e contemplativo de Tsai Ming-Liang está de volta. Kang, (o seu actor habitual Kang-sheng Lee) é um homem só que vive na sua casa e que sente uma misteriosa dor. Non vive em Bangkok num pequeno apartamento. Quando os dois se encontram, partilhando a sua solidão, a arte do realizador taiwanês explode lentamente num conjunto infinito de significados. Rizi esteve em competição no último festival de Berlim.

Há duas coisas sempre presentes no cinema de Tsai Ming-Liang. A primeira é a expressão da amizade pelo seu actor Kang-sheng Lee. A segunda é uma minuciosa capacidade de observação e escuta da realidade, o que faz com que cada filme parece um refinamento no anterior. Os dois elementos estão presentes em Rizi, um filme que parece ser feito contra a solidão, a do realizador e dos seus personagens. Kang vive atormentando por uma dor de costas, algo que o cinema de Liang vem aflorando ao longo da sua obra. Por sua vez, Anong Houngheuangsy é massagista e habita num apartamento em Bangkok, no qual prepara as suas refeições. Propositadamente não legendado pelo autor, este é um filme de comunhão que não passa pela palavra. Antes pelo encontro dos corpos, por uma singela caixa de música ou pelo habitar de um espaço urbano no qual a intimidade é nuance em atribulada atmosfera sonora. É na duração dos planos que se jogam as decisivas mutações da realidade. (Carlos Natálio)