Interessado na importância dos seus filmes para a história do cinema – individualmente, mas também como trajectória -, o IndieLisboa 2016 e a Cinemateca Portuguesa têm a honra e o privilégio de revisitar e de compartilhar com o seu público a inesgotável e surpreendente obra de Paul Verhoeven.
Verhoeven é um cineasta do corpo. Nos seus filmes, o corpo se transforma, é destruído, transviado, copiado, exposto, numa tentativa de extrair-lhe a essência. Sua obra parece inteiramente dedicada a entender o papel da superfície, no entanto, em retrospecto, é interessante notar que suas respostas pareçam sempre inconclusivas e contraditórias: em Verhoeven, o corpo conserva-se como um problema inesgotável.
O seu primeiro longa-metragem é Wat zien ik (1971), um filme sobre a vida de uma jovem prostituta. O sucesso do filme abriu portas para que Verhoeven dirigisse a adaptação literária Turks fruit (1973), o segundo filme do diretor, responsável por lançá-lo para o mundo. No filme, a câmera corre junto à trama, como se fosse operada por alguém que gira frenético, decidido e transtornado, em cumplicidade com seus protagonistas, Olga e Erick, dois jovens apaixonados que parecem não saber para onde estão indo. O espírito e a atitude que se anunciam então parecem acompanhar toda obra e carreira de Paul Verhoeven.
Em Showgirls (1995) Nomi é uma dançarina que foge do passado, em direção a uma nova vida em Las Vegas. Sua bagagem é roubada nos primeiros minutos de filme, e então a única herança que a personagem passa a carregar é o seu próprio corpo, o qual observamos dançar nu durante todo o filme, sem sobre ele sabermos nada. A nudez está do mesmo modo no neo-noir Basic Instinct (1992). O corpo também é exposto para chamar nossa atenção ao quão pouco entendemos dele. No thriller, um detetive se relaciona com duas mulheres suspeitas do mesmo crime. Ambas alegam que foram incriminadas e que tiveram sua imagem copiada pela outra. O papel do detetive é descobrir quem fala a verdade.
Em RoboCop (1987) não há corpo. O corpo do polícia é destruído e transformado em robô. O filme narra a busca desse homem pela humanidade e pela sua memória perdida. Na sala de cirurgia, construindo RoboCop, o cientista pergunta: “Podemos arrancar o braço?”, o outro responde “Ele está legalmente morto. Nós podemos fazer qualquer coisa”.
Também em Total Recall (1990) o protagonista, Douglas Quaid, descobre que a sua memória foi apagada. Ele, que foi colocado para viver outra vida, com outro nome, parte em busca da memória perdida. No entanto, a meio dessa busca, Quaid percebe que o corpo é talvez a única coisa em comum com o homem que ele foi. Se em Total Recall existe uma redenção do homem, que se une aos aliens para lutar contra uma versão sci-fi do colonialismo, em Starship Troopers os protagonistas e heróis do filme são jovens militares em missão de aniquilar uma raça alienígena. Pós-guerra do Iraque, o filme foi reavaliado pela crítica e a sátira ganhou novos sentidos.
Em Zwartboek (2006) Rachel é uma judia fugitiva durante a Segunda Guerra Mundial, e vemos sua história morrer junto com a sua família. Assistimos lentamente ao nascimento de uma nova mulher: Ellis. Ela — assim como Quaid — muda de nome. Em Soldaat van Oranje (1977) testemunhamos a dissolução do grupo durante a guerra. Cada um segue seu caminho, se viram uns contra os outros, alguns morrem e outros matam. No final resta uma foto de todos juntos, tirada anos antes. De novo: estamos, nós, presentes, justamente para entender ou nos perguntar junto ao filme: o que sobra de uma imagem?
Seguido de Turks fruit está Keetje Tippel e a sua primeira longa-metragem de guerra: Soldaat van Oranje. São também uma guinada em direção a uma espécie de diagnóstico-sentença de uma “doença da civilização”. Em De vierde man é muito claro, Verhoeven filma um escritor gay, católico e esquizofrênico. Confuso com os signos de poder: o masculino, o feminino, dinheiro, religião e sexo, o protagonista afoga-se nas contradições do mundo. Essa “doença da civilização” se torna sintoma no seu próprio corpo.
Em 2011 Paul Verhoeven participa de uma experiência com o Kickstarter, uma plataforma de financiamento online, que propõe um filme de roteiro colaborativo. Ideias de autores de todo o mundo foram compiladas e transformadas em filme por Verhoeven. O resultado é Steekspel (2012) um filme de 50 minutos, filmado na Holanda, que retorna a um certo tom dos seus primeiros filmes. Resta-nos agora esperar por Elle, que estreia em competição já no próximo Festival de Cannes.
Horários da retrospectiva do Herói Independente Paul Verhoeven:
Robocop
20 de Abril (quarta-feira), 15h30, Cinemateca Portuguesa
Wat zien ik
20 de Abril (quarta-feira), 21h30, Cinemateca Portuguesa
Turks fruit
21 de Abril (quinta-feira), 21h30, Cinemateca Portuguesa
Keetje Tippel
22 de Abril (sexta-feira), 15h30, Cinemateca Portuguesa
Soldaat van Oranje
23 de Abril (sábado), 15h30, Cinemateca Portuguesa
Spetters
23 de Abril (sábado), 19h00, Cinemateca Portuguesa
De vierde man
23 de Abril (sábado), 21h30, Cinemateca Portuguesa
Flesh+Blood
26 de Abril (terça-feira), 19h00, Cinemateca Portuguesa
Total Recall
27 de Abril (quarta-feira), 15h30, Cinemateca Portuguesa
Basic Instinct
27 de Abril (quarta-feira), 21h30, Cinemateca Portuguesa
Showgirls
28 de Abril (quinta-feira), 19h00, Cinemateca Portuguesa
Starship Troopers
29 de Abril (sexta-feira), 15h30, Cinemateca Portuguesa
Hollow Man
29 de Abril (sexta-feira), 21h30, Cinemateca Portuguesa
Paul Verhoeven Curtas
30 de Abril (sábado), 15h30, Cinemateca Portuguesa
Zwartboek/Black Book
30 de Abril (sábado), 19h00, Cinemateca Portuguesa
Steekspel/Tricked
30 de Abril (sábado), 21h30, Cinemateca Portuguesa